quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Sobre o vazio.



A vida de Jeanne Dielman é marcada por um gramática de rotina e repetição. Todos os dias, ela cuida de sua cozinha, lava pratos, corta batatas, aquece o fogão, senta com seu filho para o jantar, abre portas, limpa os pratos do filho, fala com ele antes de ele dormir, abre outras portas, recebe todas as quartas (eu acho) clientes no qual ela faz sexo por dinheiro, vai para uma loja tomar café, cuida de um bebê de uma vizinha, e se mantêm em constante movimento.

A ideia de movimento é cara ao cinema da Akerman, e não é a toa que Jeanne Dielman já foi classificado como sendo um action movie por certos críticos, toda a linha sucessiva da rotina de Dielman é feita para evitar não ter o que fazer, evitar esse vazio de uma vivência doméstica opressora que impede que haja qualquer desejo mínimo que não esteja localizado em cuidar de afazeres pessoais e que não seja direcionado a satisfazer um outro (seja seu filho, os clientes no qual ela faz sexo, o bebê da vizinha, todos seres no qual Dielman é definida pelo seu potencial de satisfação de suas necessidades), a performance quase bressoniana de Delphine Seyrig possui uma composição rígida, mecanizada em um fluxo de ações que faz com que ela seja uma representação cinematográfica da definição que Simone Weil escreveu sobre o poder da força no protagonista do poema Ilíada, de Homero:

                              
'''O verdadeiro herói, o verdadeiro sujeito, o centro de Ilíada é a força. 
A força empregada pelo homem, a força que escraviza o homem, 
a força na qual a carne do homem desaparece. 
Neste trabalho, em grande parte, o espírito humano é modificado por completo 
pela sua relação com a força, como se afogasse dentro dela, 
cego, pela própria força no qual ele imagina que consegue dar conta, 
deformado pelo peso da energia que ele se submete.''

O poder que subjuga Dielman é responsável pela opressão sistemática de milhões de mulheres ao redor do mundo, mas esse poder não emana em si de uma ordem, de um outro, ele é internalizado, aglutinado, engolido involuntariamente, a imagem do ser humano moldado pelas convenções, pelas regras de um sistema que a coloca como tendo seu sentido de vida o papel de quase não existir para si mesma. Uma figura maquínica em sua repetição.

E essa opressão ocorre de forma regular em sua vida, até o momento em que não ocorre. Em certo ponto, pequenas rachaduras entram em seu devir usual, ela esquece de aquecer direito sua comida e queima suas batatas, ela anda para um mesmo lugar sem motivo, ela esquece de apagar as luzes do quarto ao sair, ela acidentalmente deixa a colher cair no chão. Esses pequenos momentos são como partículas de uma bomba atômica. Que definem a estrutura da obra até chegar ao seu clímax, no qual Dielman mata um cliente com um par de tesouras na cama após o sexo, e fica no plano final do filme em completo silêncio, ensanguentada na sala de estar de sua casa. 

O assassinato como quebra de ruptura de toda a convenção social que definia a estrutura o filme é menos um ato de rebelião da personagem, mas um de autoexpressão da mesma ferramenta maquinica  que ela utiliza em seus afazeres domésticos, a morte é feita mecanicamente, sem emoção, sem algum sentimento de satisfação ou alegria posterior. Ela é a única linguagem que a personagem tem a oferecer para escapar dessa não-vida. E o silêncio da protagonista é menos um conflito do que uma entrada ao abismo do vazio. Já que sua rotina não existe mais, não tem como ela existir. O vazio que ela tanto evitava agora é presenciado. A completa negação do próprio desejo como uma prática rotineira agora desapareceu. Sem os pratos, sem as batatas, sem o seu filho, sem os seus homens, Dielman não existe. De forma estranha, é pelo assassinato que Dielman finalmente consegue encontrar uma forma de ser ela mesma, porque é o único momento em que ela realiza uma escolha, cria uma linha divergente, se revela, e agora o que resta é um vazio a ser enfrentado, um vazio que só pode existir pela emancipação de um desejo que existe além da ideia de satisfazer o outro. 

O vazio não deve ser algo a ser evitado, mas enfrentado diretamente como uma forma de criar uma linguagem, uma linha de ruptura, uma forma de encarnar o seu próprio desejo. A tragedia de Jeanne Dielman é de sua heroína viver em um sistema, uma sociedade, em que ela só existe a partir de um devir que abomina o vazio, o antagoniza, o vilifica, ele nunca é expurgado, e deve permanecer apenas encrustado dentro de seu ser. 




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