segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Dentro da Noite- As Críticas Cinematográficas de Manny Farber.

 



O ensaio traduzido a seguir foi escrito por Jonathan Rosenbaum e publicado originalmente em 1993 como parte da livro ''Placing Movies- The Practice of Film Criticism,'' uma coleção de textos de Rosenbaum no qual estou traduzindo para ser publicada pela primeira vez no Brasil. Ele detalha seu relacionamento e a importância que o estilo e trajetória crítica de Manny Farber teve em sua carreira profissional e sua vida pessoal. A tradução a seguir foi publicada com a permissão do próprio Rosenbaum. 


''Em seu trabalho, o quanto importante é ressaltar ao leitor se você gostou ou não de um filme, ou se um filme é bom ou ruim?" perguntou alguém certa vez a Manny Farber em uma entrevista. ''Isso é um aspecto praticamente inútil para o trabalho de um crítico,'' foi a resposta de Farber, que elaborou seu raciocínio: ''...a última coisa que quero saber de alguém é se ele gostou ou não do que viu, os problemas sérios de escrever críticas vão além de uma simples questão de gosto. Eu não acho que a crítica deve se importar em estabelecer hierarquias de gosto, isso pra mim é um apêndice execrável que distrai do trabalho sério que deve ser empreendido. A verdadeira crítica de cinema não é sobre impor hierarquias.'' Alguns anos depois, em uma outra entrevista publicada apenas em francês (então não consigo transcrever diretamente aqui), ele expressou sua irritação pessoal com o texto escrito por Pauline Kael sobre TOURO INDOMÁVEL (1980) de Martin Scorsese. De acordo com Farber, Kael realizou sua crítica do filme como se ela soubesse exatamente quais elementos específicos eram ''bons'' ou ''ruins'' em cada plano, em cada cena do filme. E Farber, nessa entrevista, questionou o que aconteceria se esse mesmo tipo de metodologia crítica fosse usada para analisar uma pintura de Cézanne, ou uma composição de Mozart.

E na verdade, alguns dos momentos mais verdadeiros e sinceros encontrados nas críticas de Farber (e, seguindo seu exemplo, não irei me referir a esses momentos como meus ''favoritos'' para não cair na armadilha de hierarquia de gosto) são aqueles que você, como leitor de sua obra, não consegue ter certeza se ele está elogiando ou ridicularizando o objeto perante ele. Mas talvez ele esteja fazendo as duas coisas ao mesmo tempo:


                                    ''... O fato de Á QUEIMA ROUPA (1967), de John Boorman, ter  como protagonista um ator ganhador do Oscar (Lee Marvin) não é importante. A presença de Marvin se impõe sim ao espectador, com a sua postura de mármore com nariz gigantesco e um cabelo liso e serpentino que mal parece ser um cabelo real, assim como sua boca com lábios fortes e implacavelmente largos. Seções específicas de seu corpo são utilizadas pelo filme como se fossem notas musicais regidas por um pianista. A sua figura é rígida, vertical, esbanjando saúde e uma pele queimada pelo sol escaldante da região, mas a presença de Marvin como ‘’ator’’ em si não é realmente central ao filme.''


                                 ''...O sistema cinematográfico de Howard Hawks parece ter uma preocupação secreta em estabelecer redes de intrigas entre pessoas, tramas, e chapéus de oito polegadas.


              ''... Zack (Gene Evans) aparece no início de CAPACETE DE AÇO (1951), de Samuel Fuller, mostrando apenas seu capacete militar com um buraco no meio, enquanto o personagem lentamente sobe para avistar o terreno inimigo da região, um movimento parecido com o de uma tartaruga saindo cautelosamente de seu casco, até chegar o momento em que ele retira o capacete para mostrar seus olhos minúsculos e mesquinhos, lentamente analisando o ambiente de esquerda a direita, fiscalizando o local. Ele é como um ser que nasceu no Hospital de Tormento, seu parto ocorrendo entre as salas de ''Malícia'' e ''Brutalidade.''

Essas impressionantes descrições imagéticas encontradas em sua obra não foram feitas para representar um juízo de valor, um catálogo para ser exibido perante o júri de um tribunal, mas sim para compor um inventário criativo particular de Farber. E o método característico de seu estilo é sobrepor essas observações visuais uma após outra, ou criar uma justaposição entre elas de forma desordenada na superfície plana da página, e não juntar elas em uma linha linear narrativa ou argumentativa. Dizer que essas digressões verbais não levam a lugar nenhum é perder de vista o ponto; na verdade, elas vão para todos os lugares possíveis, criando uma espécie de cereal complexo e impetuoso que induz associações que vão além do próprio filme que ele está discutindo. (O ensaio definitivo sobre o trabalho de Farber, escrito por Donald Phelps e aparecendo em sua coleção ''Covering Ground'' é intitulado ‘’O Crítico Que Vai a Todos os Lugares.’’)  Apesar do seu estilo pioneiro e inédito, (e Farber foi primeiro crítico norte americano que se deu ao trabalho de descobrir que tipo de filmes cineastas como Hawks, Anthony Man, Samuel Fuller, e Michael Snow, entre outros, estavam fazendo) as linhas de percepção abertas pelo seu trabalho nunca eram o suficiente para convencer um grande público a ir ver os filmes no cinema (mas, por outro lado, também não foram o suficiente para conseguir espantar uma audiência de certas produções), e isso já é o suficiente para separar sua trajetória da tradição crítica ''mainstream'' no qual ele era contemporâneo. Os seus textos não possuem a função de resolver debates, ou provar uma certa ideologia, coisas que são consideradas essenciais em grande parte da escrita acadêmica sobre cinema. Tudo que eles propõem a fazer é liberar um formigueiro de conceitos e associações, oferecer uma colmeia de ideias sobre cinema para zumbir dentro de nossas cabeças.

Sua carreira em crítica de cinema teve mais de trinta e cinco anos de duração, e não é tão longa quanto a sua carreira como pintor, que durou mais de metade de um século e ainda está fortemente ativa, mas é levemente maior que a sua trajetória como carpinteiro (que durou mais ou menos desde o período de 1938 até 1968).  Nascido em 20 de fevereiro de 1917 em uma família judia de classe média em Douglas, Arizona, ele começou a publicar seus primeiros textos um pouco antes de seu aniversário de 25 anos, após ter sido contratado pela revista The New Republic no início de 1942 para atuar como crítico de arte; E dentro de seis semanas, ele começou a escrever na coluna de cinema da revista, substituindo o crítico Otis Ferguson após ele ter que sair do país devido ao alistamento militar. O seu trabalho como crítico de arte, que continuou de maneira esporádica até 1961, é composto de mais de quarenta ensaios; e seu trabalho como crítico de cinema, muito mais volumoso, durou um período de cinco anos na The New Republic, e chegou ao fim quando o ex-vice presidente dos Estados Unidos Henry Wallace se tornou editor chefe da revista, e Farber, um conservador na época, se demitiu como forma de protesto. Seus textos voltaram a aparecer na revista semanal The Nation, aonde ele trabalhou ativamente durante um período de mais de cinco anos, e após isso ele foi trabalhar na Revista Time, uma empreitada sua que durou apenas seis meses, substituindo seu amigo crítico James Agee como após ele ter que sair para seguir uma carreira em Hollywood.

Outras jornadas de trabalho extensas (porém realizadas com menos regularidade) foram seus trabalhos para as revistas The New Leader (entre 1958 até 1959), a revista Cavalier (entre 1965 até 1967), a revista Artforum (de 1967 até 1972), e em uma revista que durou pouco tempo, criada por Francis Ford Coppola, chamada City Magazine(1975). Textos de grande destaque e repercussão na carreira de Farber foram publicados durante seu período nas revistas ‘’City Lights ( ''Preston Sturgers: Um Sucesso no Cinema'', escrito com W.S. Poster, em 1955), Commentary  (''Filmes Underground: Um Pouco de Autoconfissões Masculinas,’’ escrito em 1957)  Perspectives (''Um Cinema Difícil de Vender,'' 1957), e na revista Film Culture ( "A Arte do Elefante Branco versus a Arte Termita.'' escrito em 1962).  No ano de 1968, o já mencionado Donald Phelps publicou uma coleção de mais de 101 páginas do trabalho de Farber como crítico de arte e de cinema. E dois anos depois, a editora Praeger publicou uma coleção extensa de seu trabalho na área de crítica cinematográfica, uma coleção intitulada Espaço Negativo (Negative Space), e reimpressa em uma versão atualizada no ano de 1974. Começando no período de 1968, todo o seu trabalho de crítica de cinema passou a ser realizado colaborativamente com a artista Patricia Patterson, também uma pintora, na qual ele se casou em 1976. E no período entre 1975 a 1977 ocorreu uma explosão de textos colaborativos Farber-Patterson, entre eles uma entrevista extensa realizada com Richard Thompson, esses textos foram publicados na revista de cinema Film Comment, e depois disso, sua trajetória crítica passou por um hiato. 

 <><><><><><><><><><><><>

 

De todas as formas de choque cultural que experienciei durante minha vida, eu acredito que o mais impactante foi quando me mudei de Londres para viver em San Diego, no início de março de 1977. Foi mais devastador do que a mudança que enfrentei saindo de Alabama para morar em Vermont em 1959, que havia sido o motivo principal para que meu sotaque sudestino fosse desaparecendo gradativamente ao longo de semanas, após eu ter imediatamente percebido que não poderia usá-lo naquela região sem soar completamente ridículo.  E foi também uma mudança mais desorientadora do que os deslocamentos que enfrentei indo de Nova York para Paris em 1969, de Paris para Londres em 1974, e finalmente de Nova York para viver em Hoboken, Nova Jersey, no ano de 1979. Parte do choque que tive foi o fato de eu voltar a viver nos Estados Unidos após oito anos passando minha vida fora; e outra parte foi devido ao fato de que eu saí de uma sociedade socialista para viver na comunidade mais ‘’ de direita’’ que havia presenciado na minha vida. Eu me localizei na cidade La Jolla, um lugar em que, como bem disse Raymond Chandler certa vez, pessoas adultas e velhas ainda vivam na casa dos pais. Eu lembro que o cheiro de eucalipto que imediatamente senti colocando os pés lá era avassalador sob meus sentidos, e o sentimento geral que o lugar me passava era de ser um oeste moderno. Bandeiras americanas eram orgulhosamente exibidas na rua principal da cidade, e, para tomar meu primeiro café da manhã na cidade, eu fui em uma cafetaria decorada inteiramente de pinturas do Norman Rockwell, e uma doce e gentil senhora havia anotado meu pedido na caixa registradora, e me disse ‘’Espera um pouquinho querido, tô escrevendo seu pedido nesse órgão judaico daqui.’’

Apesar de tudo isso, havia um bom motivo para eu ficar nesse lugar. Anteriormente em trabalhava como funcionário público em Londres como forma de garantir minha renda fixa, e era um emprego que poderia ter se tornado permanente para mim, e essa vivência lá estava me fazendo preocupado, eu estava com medo de que, como escritor, eu estivesse perdendo e me distanciando do meu idioma americano. Eu estava com saudade de meu lar, e estava vendo formas estratégicas de como negociar meu retorno e voltar para minhas raízes. 

Após ter enviado uma série de cartas para diversos professores de cinema dos Estados Unidos, uma das respostas me chamou a atenção: Manny Farber, meu critico americano de cinema favorito, no qual eu nunca havia encontrado presencialmente, enviou resposta sagaz para meus questionamentos, escrita em seu estilo humorístico habitual, que dizia basicamente que ele não imaginava que seria capaz de me convencer a sair de Londres, mas ele precisava de algum professor substituto para trabalhar durante a primavera e no semestre de outono no Departamento de Artes Visuais da Universidade de Califórnia, San Diego. Ele descreveu em seu texto o ambiente escolar e o clima característico da região, fez menções a proximidade de algumas casas de atores hollywoodianos no qual ele passava perto de carro em Del Mar, e também falou, comentando o fato de que eu disse que não possuía carteira de motorista na época, que seria necessário eu ter algum carro lá quando eu voltasse. 

Após ler sua resposta, eu telefonei a ele e perguntei no início da ligação ''Olá, aqui é Manny Farber?,'' e o som que ouvi como resposta foi ''Oi, não, aqui é Abraham Lincoln.'' Um pouco depois ele me avisou que havia uma possibilidade ‘’remota’’ de que a oferta de eu atuar como professor em San Diego poderia ser ampliada para mais dois semestres adicionais, e eu decidi fazer esse jogo de dados e pular no abismo do desconhecido. Quando eu cheguei lá alguns meses depois, eu havia me adiantado bem, levei 42 caixas de papelão para guardar documentos, quatro malas, um fichário pessoal meu, e um gravador de som, e esse meu retorno foi feito apenas uma semana após eu ter completado 34 anos de idade, e foi feito duas semanas após Manny ter tido seu aniversário de 60 anos.

                      

                "Hoje em dia, o pintor americano independente considera a realização de sua composição artística sem ter um interesse pessoal e particular por ela, apenas com um espirito eficiente de pessoas que acreditam que fazer suas obras com uma abordagem ''que vai direto ao ponto, sem firulas,’’ irá ser o suficiente para tornar elas interessantes.  Do uso congelante do design cinético de Feininger, até a idolatria melancólica encontrada na escrita automática de Jackson Pollock, a fidelidade a uma obediência estrita a um princípio estético e estilístico que estrutura e guia essas obras de arte faz muitos destes trabalhos parecerem frios, e com uma persistência estética homogênea entre si. O artista nesse caso não apenas considera um único principio estético em exclusão absoluta a todos os outros, mas a sua solução rápida e decorativa encontrada para resolver os problemas de composição de cada quadro é reflexo de uma geração de jovens americanos que acreditam que precisam seguir alguma intensidade de ''obediência'' a algum princípio para poderem ter sucesso em suas vidas. A partir do momento em que este tipo de técnica é dominada, o artista vai ser tornar apenas uma peça maquínica de criação de um mesmo trabalho com cores, tamanhos, e formas diferentes. As escolas de arte de hoje em dia agora encontram estudantes trabalhando de forma magistral para cobrir um colchão largo com tinta de alumínio caseira, uma arte sem modelo, sem sujeito, sem composição, e logo, sem mãos!"

-Texto de Farber publicado para revista The Nation, no dia 17 de fevereiro de 1951.

É um completo absurdo, é claro, dizer que Farber não trabalha com uma perspectiva ''qualitativa'' em seus textos. Leia de novo as transcrições de suas textos sobre Á QUEIMA ROUPA, Howard Hawks, ou o personagem de Gene Evans em CAPAÇETE DE AÇO, e você verá que todas são uma maneira particular de demonstrar apreciação ao objeto analisado. Mesmo se elas estiverem escondidas dentro de um senso de humor particular, elas são mesmo assim feitas a partir de um lugar de amor. E se o trabalho de crítica cinematográfica realmente ‘’não tem nada a ver com hierarquias,’’ então o que seria os textos citados acima se não argumentações e defesas apaixonadas pelo trabalho de Sturges, pelos filmes do ‘’cinema underground,’’ e pela ‘’Arte Termita? ’’ E também o que podemos dizer de seus textos polêmicos sobre o cinema ‘’que é difícil de ser vendido’’ e sua argumentação contra a ''Arte Elefante Branca?''

O que faz Farber ser, atualmente, o critico de cinema mais importante dos Estados Unidos? Apesar do fato de ele sempre ter tido um gosto ‘’contrário’’ em relação a maioria, e de ter sido considerado um critico cuja leitura só seria apreciada por outros críticos? 

Entre os antecessores mais marcantes do estilo de Farber, eu consigo lembrar de apenas de dois nomes: o subestimado Harry Alan Potamkin, um intelectual marxista e viajante internacional durante a década de 1920 até 1930, e o superestimado Otis Ferguson, um escritor que era famoso pelas gírias sagazes que conseguia colocar em seu trabalho, que foi publicado na década de 1930 e 1940. Entre autores contemporâneos de  Farber, estão presentes ao menos três de seus amigos e compatriotas: W. S. Poster, James Agee, e Robert Warshow. E entre seus diversos discípulos podemos encontrar figuras como Greg Ford, J. Hoberman, Donald Phelps, Ronnie Scheib, Duncan Shepard, e é claro, eu mesmo. (Duncan em particular acompanhou Farber desde de San Diego até o momento que ele foi morar em Nova York, aonde atualmente ele escreve suas críticas para o San Diego Reader.) E entre aqueles que surgiram com uma década de atraso do período em que Farber trabalhava ativamente, estão presentes dois nomes que se tornaram figuras de grande influência para jovens críticos nas de décadas de 60 e 70: Andrew Sarris e Pauline Kael.

Kael, em comparação a seus contemporâneos, foi a mais vista como um modelo ideal a ser seguido por jovens críticos, especialmente pela intensidade e clareza contida em sua prosa, e principalmente pelo interesse dela em dar ‘’notas’’ e ‘’pontuações’’ as filmes que ela assistia. E embora ela tenha um valor inquestionável pela forma como desmascarava o verdadeiro valor de obras medíocres, é bem difícil considerar o trabalho dela como algum tipo de enfrentamento ou subversão do status quo intelectual de sua época; o papel que ela tinha, na verdade, era de fazer alguns intelectuais se sentirem menos culpados por desmerecerem a complexidade de filmes considerados ‘’difíceis.’’ Naquele período, Farber estava descobrindo o trabalho de cineastas como Michael Snow, e abraçando sem reservas as dificuldades que obras de diretores tão distintos como o casal Straub/Huillet, Jacques Rivette, Marguerite Duras, e Chantal Akerman, traziam ao seu público. Enquanto a creche escolar formada ao redor da figura de Kael estava orgulhosamente limitando todo seu gosto estético a cineastas como Sam Peckinpah e Brian De Palma.

O próprio Sarris também começou encarnando a figura de um modelo importante a ser seguido, especialmente pela sua defesa de filmes como SETE MULHERES de John Ford, OS PASSÁROS de Alfred Hitchock, e GETRUD de Carl Theodor Dreyer, contra os comentários negativos que eram feitos sobre estas obras. Mas, ao longo do tempo, a paixão original que Sarris tinha de moderar esses debates passou a diminuir após o final da década de 60, e pela falta de interesse dele, era praticamente muito difícil ele querer voltar a esse formato de defesa apaixonada que tinha. Como Farber, ele tinha a fraqueza jornalística de criar sagacidades verbais em seus textos, e havia desenvolvido para si uma missão quase religiosa de refazer o cânone convencional do que era considerado historicamente como sendo o ''os melhores filmes'' do cinema. Mas, diferente de Kael ou Farber, ele não tinha o instinto natural de ir em direção contrária a opinião publica majoritária. As principais preocupações temáticas em suas criticas eram na maior parte focadas na elaboração visual da mise-en-scène, e no relacionamento que os gêneros masculino e feminino desenvolviam entre si na tela, preocupações respeitáveis para um crítico de cinema, mas que não eram  consideradas maneiras de repensar radicalmente o conceito de arte na época.

Os interesses principais na trajetória crítica de Farber, as ideias de iconografia, atuação, e detalhes realistas encontrados nas cenas, também não podiam ser considerados ‘’radicais’’ por si só, isoladamente. O que fez ele ser uma figura diferente, um aventureiro textual, foi a maneira de como ele expressava suas ideias pela escrita, que era parecido com o método que ele utilizava em suas pinturas pelo fato de que ele desenvolvia uma texto, como Bill Krohn bem definiu uma vez, que ‘’...pode ter sua porta de entrada ao leitor em qualquer lugar na página, não há qualquer hierarquia aqui, ou um centro, ou uma linha horizontal,’’ o seu trabalho engloba um sentimento de ‘’recusa absoluta em sistematizar suas ideias’’ e isso em grande parte faz com que seja ‘’impossível fazer uma previsão clara, lendo o início de seus ensaios sobre um filme ou um cineasta, de aonde esse texto irá chegar: Em seu trabalho não há tese, não há antítese, não há nem a possibilidade de uma síntese. E em parte porque esse método de ’jogar tudo no texto de uma vez’ funciona de maneira diferente das intenções da crítica de cinema tradicional de ‘revelar tudo’  pela construção de um modelo microcosmo que já estrutura, a priori, tudo que pode ser escrito e dito dentro dele.’’

Esses comentários anteriores vêm de um ensaio escrito por Krohn, que infelizmente nunca foi publicado em Inglês, sobre a pintura ''My Budd’’(traduzida literalmente como ''Meu Budd'') realizada por Farber em 1981, e baseada em parte nas ruminações dele sobre o cineasta Budd Boetticher. Na parte final do ensaio, Krohn adiciona esse pensamento: ‘’Entre os pontos que estou tendo dificuldade em integrar dentro desse artigo é esse meu questionamento desconfortável: ‘’Porque que aquela pedra grande que está na parte direita, abaixo na pintura, é parecida com um Picles?' É bem duvidoso que qualquer tipo de análise seja capaz de responder satisfatoriamente um questionamento como este, mas os ensaios escritos por Farber fazem um uso abundante destes tipos de detalhes enigmáticos e desconcertantes, que funcionam como corpos alienígenas dentro de seu texto, como elementos paródicos de reflexões críticas sérias, como cascas de banana feitas para iniciar alguma argumentação.’’ Como uma dança saltitante que leva a movimentos cômicos e abruptos, a digressão critica praticada por Farber nós direciona a um Picles, a atalhos que parecem falsos, ao mesmo tempo que seu objetivo central é cósmico em sua ambição, o que sugere que seu método possui uma característica dialética mesmo se o conteúdo de sua prosa entre em conflito direto com o próprio conceito de dialética. Se as análises acadêmicas são concentradas em grande parte para uma dissolução e desmitificação do mistério de obras de arte, as viagens empreendidas com uma disciplina metódica e série por Farber se concentram, de maneira apaixonada, para a sobrevivência e perpetuação deste mistério. Atrás de toda essa grandiloquência, muitas das questões suscitadas são como aquelas feitas por uma criança teimosa sobre o que que tem dentro de um Picles. 

 

 <><><><><><><><><><><><>

 

Quando cheguei a La Jolla no início de março, Manny estava finalizando seu semestre de inverno na faculdade, e eu consegui ir a uma de suas palestras finais do período, que ele deu para uma audiência de mais de cem estudantes. Nela, ele realizou sua rotina habitual de stand-up, performou suas digressões orais sem usar nenhum papel à mão, e lançou suas ideias quase como se estivesse capturando elas espontaneamente, no momento exato em que elas surgiam dentro de sua cabeça, um solo de um cantor de jazz. Ele fazia tudo isso enquanto eram exibidos rolos de filmes que eram o centro temático de seu debate no dia (eu me lembro que o primeiro a ser exibido foi A VINGANÇA DO ATOR (1963), de Kon Ichikawa. E algumas semanas antes, ele programado a exibição de um filme de 4 horas do Michael Snow chamado RAMEAU´S NEPHEW, e nesta sessão teve um momento em que um dos alunos reclamou sobre a impenetrabilidade do filme, e Manny concordou com ele, respondendo '‘...é como tentar encontrar um amigo querido dentro de um estádio lotado de uma partida de baseball.’’) A forma ‘’descontínua’’ de assistir aos filmes era o método favorito e preferido por Farber, e ele tem esse elemento em comum com Godard; se ele gostava muito de um filme, como por exemplo A PALAVRA (1955), de Carl Theodor Dreyer, e se este filme estivesse sendo exibido em várias sessões diferentes dentro do campus, ele então iria aparecer em sessões diferentes e em momentos diferentes da duração do filme, e também com rolos diferentes, dependendo do horário ele fosse assistir.

Foi durante esse mesmo período em que Manny me deu uma máquina de escrever portátil que não utilizava mais, um presente que assumiu representações míticas e simbólicas dentro de mim. Mas, mesmo assim, foi um processo difícil tentar solucionar como eu conseguira, satisfatoriamente, substituir ele como palestrante na faculdade, especialmente porque o único trabalho que fiz anteriormente como professor foi em dar aulas de Inglês para estudantes calouros em uma faculdade de Long Island, há mais de uma década antes de eu voltar a San Diego. Foi também ainda mais difícil resolver o que eu iria fazer com essa figura paterna que tinha, em um momento na minha vida no qual eu acreditava que havia finalmente aprendido a viver sem ter alguma. Tendo já passado metade da minha vida longe de Alabama, eu considerava meu próprio pai como uma presença agradável e leve em minha vida, mas não o via mais como um guia, como um conselheiro, ou como um exemplo em termos mais práticos, ao menos não na forma na qual ele era reconhecido pelos estudantes do colégio em que ele dava aulas. 

 Manny, entretanto, parecia radiar a mais potente presença patriarcal imaginável, para qualquer um que estivesse perto dele em um raio de cinquenta quilômetros. E era bem difícil não deixar de ser seduzido por esta presença, mesmo estando formado na época e com uma bagagem intelectual que não me permitia sucumbir completamente por ele. Isso me fez reconhecer que estava dependente dele, mas que também estava bem desconfortável por ter esta dependência. Um ano depois, ou um pouco mais, um amigo em comum nosso disse pra mim que Manny tinha essa hábito ruim de ''adotar'' certas pessoas e depois ''abandonar'' elas, o que eu reconheci que parecia mesmo ser uma definição verdadeira. Durante grande parte do período em que morei em San Diego, Manny parecia oscilar regularmente (e sem dar nenhum aviso prévio) entre ser uma figura paterna, ser um amigo, ou ser uma espécie de irmão judeu particularmente competitivo.

Manny me assegurou que o trabalho de realizar estas palestras seria uma moleza pra mim, da mesma forma como era meu processo de escrita, mas quando ele foi me visitar na segunda palestra que dei dentro da faculdade(a única que ele realmente foi), eu estava bem longe de atingir qualquer nota certa na minha apresentação oral, e até mesmo os estudantes, que tiveram que escrever suas opiniões em papéis para uma avaliação coletiva de professores, não pareciam demonstrar um entusiasmo tão grande com a minha perfomance. Eu até mesmo antagonizei alguns com o meu jeito de agir e meus métodos de ensino, e quando chegavam as avaliações dos alunos que faltavam a ser entregues no final do semestre, se tornou transparentemente claro que eu havia fracassado na empreitada, e não apenas em minhas palestras para calouros, na qual eu gerei certo ressentimento em alguns alunos por minha falta de sagacidade por não apresentar algum método de sucesso para entrar no mercado de arte da época, e isso me fez descobri que essa procura cínica de sucesso por eles era exatamente o que motivava alguns estudantes a entrar naquela faculdade em primeiro lugar. E realmente, havia certos momentos em que isso parecia ser a temática central do departamento inteiro de ensino, no qual era composto de artistas ''rejeitados'' de Nova York. Para colocar de forma mais direta, eu estava naquele período descobrindo de forma dolorosa como o espirito dos anos 60, em especial nos Estados Unidos, estava desaparecendo. E além de tudo isso eu ainda não conseguia passar em um exame de direção.

Uma parte minha, é claro, tinha orgulhou demais para se importar com tudo isso, mas isso só fazia as coisas piorarem. Diferente de Manny, eu não conseguia criar uma ponte entre meu processo de escrita e o processo oral de dar palestras, como se eles fossem parte de uma única coisa. E eu não tinha o talento de stand-up habitual de Manny para conquistar uma grande audiência. No meu seminário de escrita de críticas, eu fiquei absolutamente desanimado em como muitos dos estudantes estavam querendo escrever em um estilo idêntico do de Manny, e infelizmente não fui tão eficiente quanto queria em tentar convencer eles a descobrirem suas próprias vozes através da escrita.

Enquanto isso, todas as minhas tentativas de conquistar uma carteira de motorista eram fracassos patéticos. Olhando atrás para meu documento de professor de 1977, eu consigo deduzir que eu provavelmente passei mais tempo naquele período fazendo testes de direção na auto-escola do que assistindo filmes, e cada vez que eu fracassava o teste de direção, era por motivos distintos; uma ou duas vezes eu também havia fracassado na minha prova escrita. E embora eu conseguisse pegar o ônibus para me locomover para o campus escolar, e eu ainda ficava absurdamente dependente de outras pessoas para ter qualquer tipo de vida social na época, e Manny não era o único que estava começando a ficar enjoado com a minha forma particular de isolamento (houve uma vez, acho que no meio de mês de julho, que talvez como uma forma de conciliação por ter gritado comigo no telefone, ele decidiu me dar carona de carro para que eu pudesse fazer minha prova escrita na auto-escola. E ele ficou tão ansioso e hiperativo esperando por mim que ele educadamente me perguntou se eu podia voltar de ônibus pra casa.) 

E então apareceu o problema de Jean-Pierre Gorin, um ex-colaborador de Godard que era um dos amigos mais próximos de Manny e que havia, até aquela época, atuado como o outro professor palestrante de estética cinematografia na universidade. Com apenas alguns dias de antecedência, J-P saiu da faculdade no meio do semestre de inverno para poder viajar para as Filipinas para trabalhar em APOCALYPSE NOW (1979), de Francis Ford Coppola, um trabalho que acabou sendo menos consequente para ele do que esperava inicialmente, e devido a isso ele teve que retornar para Del Mar, California. Pouco tempo depois de eu ter sido tirado do programa, eles me fizeram voltar de novo, e esse processo fez eu e Gorin nós olhamos entre si de forma bem mais pesada. Eu não concordava com a forma demagoga, difícil, fechada, da postura ‘’intelectual’’ que era seu estilo de dar palestras, e também me ressentia pela sua reputação de ser um mulherengo dentro do campus, e ele em troca, obviamente, se sentia ameaçado pelo meu relacionamento próximo com Manny; o ar entre nós estava pesado, como um clima ruim de dois irmãos pequenos que se vêm como rivais. 

Patricia, entretanto, que era apenas alguns anos mais velha que mim, rapidamente se tornou minha melhor amiga em San Diego, como se ela fosse a irmã querida que sempre quis ter e não sabia que conseguiria encontrar. Eu estava começando a suspeitar que parte das minhas respostas a maioria das colaborações críticas que ela fazia com Manny na época era geradas pela sua influência especial nos textos, como por exemplo, a transição gradual de elogios para uma violência brutal no ensaio extraordinário feito pela dupla sobre TAXI DRIVER (1976), de Martin Scorsese (publicado como ‘’O Poder e a Glória’’ na revista Film Comment, em sua edição de Maio /Junho de 1976), que culminava entre uma análise inicial cética do filme se transmutando em um raio de raiva no início da segunda parte deste ensaio: ‘’...o que é realmente nojento sobre TAXI DRIVER não é o seu retrato de um homem solitário, mas a propaganda ininterrupta que ele traz sobre o poder magico fornecido por armas.’’ É possível pensar, é claro, na possibilidade de que foi Manny, e não Patricia, que teve a ideia de escrever esta sentença, a mudança tonal drástica trazida certamente lembra seu método critico, mas eu não consigo pensar em nenhuma espécie parecida de comentário crítico ou negativo sobre o poder fálico de armas em algum outro texto escrito individualmente por Manny, e considerando todos os filmes noir que ele celebrava entusiasmadamente, havia oportunidades múltiplas para ele explorar este tipo de fúria. Então parecia, de qualquer forma, que algum tipo de sofisticação ideológica e um senso mais forte de crítica social havia conseguido penetrar nas entranhas dos textos de Manny, na mesma época em que ele havia começado a colaborar com a Patricia para seus ensaios, e esse elemento dava aos seus novos trabalhos um tipo de densidade moral que era muito distinta de suas celebrações da figura macho de seus ensaios mais antigos (se eu tivesse que definir alguma diferença psicossexual básica entre o gosto cinéfilo de Manny e o meu gosto é que ele, assim como Kael, vê o cinema como uma mídia essencialmente masculina, enquanto eu vou nela para buscar seu lado feminino.)

 Eu e ele nunca entramos em discussões políticas, mas mesmo assim era possível sentir o peso de nossas visões diferentes. Em um dos nossos primeiros encontros, Manny me encarregou do trabalho de convidar cineastas para o campus durante a primavera, e quando ele sugeriu que eu convidasse o John Milius, eu respondi de maneira enfática que não era capaz de me associar publicamente com um homem tão abertamente fascista. Se a minha memória estiver correta, ele parou de mencionar o assunto logo depois desse momento, mas em uma entrevista que fez com Richard Thompson, feita mais ou menos na mesma época (na verdade antes de eu ter chegado a San Diego e completada algumas semanas depois) incluiu um comentário de Manny falando sobre uma cena de um filme de Milius chamado O VENTO E O LEÃO (1975), e eu sempre interpretei essa menção bem especifica ao cineasta como uma espécie de resposta pela minha intolerância política particular, provavelmente influenciada pelo tempo que vivi em Londres (E nessa mesma entrevista, há uma réplica irritada de Manny para um artigo de Stephen Heath publicado pela revista Screen como ‘’Espaço Narrativo’’, no qual eu havia feito o Manny ler naquele período.)

Alguns anos depois, tive uma discussão com ele sobre O FRANCO ATIRADOR (1978), de Michael Cimino, que era um filme que eu detestava completamente, mas no qual ele havia gostado, especialmente, se eu me lembro certo, pelo final ousado em que todo seu elenco canta ‘’Deus Abençoe a América.’’ Eu perguntei a ele como ele se sentia com a representação desumanizada dos soldados vietcongues  no filme, quase como se eles fossem insetos agressivos. Ele ponderou que talvez fosse sim questionável mostrar o povo vietnamita como não tendo nada em comum com a gente, mas que fazer isso não era nem um pouco pior do que o proposto formato ‘’liberal’’ de encarar essa questão, que seria mostrar eles como sendo idênticos a nós (de modo geral, suas observações sociais sempre tendiam para o lado da iconografia; certa vez, comentando sobre a diferença entre filmes dos anos 30 e dos anos 70, ele elogiou a forma como pessoas eram retratadas nos filmes da época anterior, ao dizer, ‘’nos filmes da década de 30, cada silhueta tinha uma potência legitima.’’)

Dado os meus próprios impulsos de buscar trabalhar em coletividade, inspirado em grande parte pelos anos que vivi fora dos Estados Unidos, eu tinha a esperança de que algum tipo de projeto colaborativo poderia ser feito entre eu, Manny, e Patricia,; ou, se isso não fosse possível, que ao menos nós poderíamos dar feedback sobre nossos próprios textos enquanto ainda trabalhávamos sobre eles. Mas alguma coisa dentro de Manny, talvez até mesmo em Patricia também, resistia fortemente a qualquer tipo de proposta feita nesse formato, mesmo quando nós estávamos trabalhando simultaneamente em ensaios para a mesma revista, Film Comment. O ensaio que eles fizeram para a revista, até hoje o último texto critico publicado por ambos, foi sobre JEANNE DIELMAN (1975), de Chantal Akerman, que eu de certa forma sentia uma conexão, mesmo que de maneira oblíqua, por eu ter escrito sobre o filme anteriormente na minha coleção ‘’Encontros em Edinburgh,’’ e esses textos haviam sido um dos meus trabalhos que mais impressionava eles. O meu ensaio sobre Luc Moullet, possivelmente o único trabalho meu que teve uma grande influencia do estilo de Manny (mesmo que Manny não tenha gostado nem um pouco de LES CONTREBANDIÉRES(1968) quando o exibi em uma sessão para ele). Ironicamente, eu me lembro de todos nós três ficamos chateados por termos sido segregados e marginalizados pela Film Comment, ao colocar nossos textos na capa de traz da edição de Novembro-Dezembro de 1977, em uma seção intitulada ‘’Além da Nouvelle Vague.’’ 

Uma diferença chave (entre outras) entre nossos respectivos textos foi as visões diferentes que tínhamos sobre suas ''estrelas'': JEANNE DIELMAN (1975) possui uma performance luminosa e radiante de Delphine Seyrig, enquanto a estética de LES CONTREBANDIÈRES (1968) é definida em essência pela ausência de qualquer tipo de modelo de estrela de cinema. Alguns anos depois, quando Manny adotou um cachorrinho de um canil, ele deu o nome a ele de Jimmy, homenageando Cagney.  E realmente, eu tenho minhas suspeitas que a admiração que ele tinha pelo cinema do casal Straub/ Huillet era relacionado com o modo que os dois realizadores lidavam a presença luminosa de seus atores, verdadeiras estrelas de cinema.

<><><><><><><><><><><><>



Algumas outras presenças luminosas do cânone particular de Farber: os heróis de Werner Herzog, o apartamento de WAVELENGHT (1967) de Michael Snow, ‘’A Cabeça de Amendoim'' do Lee Marvin os interior de lares da classe trabalhadora no cinema, Barbara Stanwyck, Monte Hellman, Godard, Fassbinder, ‘’Stan e Ollie’’ (titulo de uma pintura sua de 1981), ‘’O Joelho de Rohmer’’ (idem, 1982), James Agee, a Mouchette de Robert Bresson, Sam Peckinpah, John Wayne em O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (1962) de John Ford, William Demarest, James Stewart em western dirigidos por Anthony Mann, Wile E. Coyote, Jane Greer, México. Cerca de metades dessas figuras são associadas a violência e a sadismo.

 <><><><><><><><><><><><>

Nessa época eu já tinha me mudado para uma belíssima casa com vista pela janela de um canyon em Del Mar. Era localizada há mais ou menos um quilometro das casas de Manny e Patricia, e eu compartilhava meu lar com Louis Hock, um professor amigo meu e também cineasta, e durante esse tempo eu conseguia dirigir mesmo que ilegalmente, já que ainda não tinha minha carteira de habilitação, e era infelizmente um recurso necessário para eu chegar a tempo no campus para dar minhas aulas. Com minha temporada como professor chegando ao fim, eu tive a imensa sorte de ser notificado que eu iria receber um fundo de 5 mil dólares da NEA (Doação Nacional pelas Artes), e esse dinheiro iria me liberar do feitiço mental de preocupação crônica de como eu conseguiria pagar meu aluguel, e receber essa noticia produziu a primeira chama dentro de mim que inspirou a criação do meu livro autobiográfico, que posteriormente acabou se tornando Moving Places (1980). Eu comecei a trabalhar neste projeto logo após o semestre de outono chegar ao fim. E no início do ano seguinte, Louis e eu recebemos um novo hóspede em nosso lar pela figura de Ray Durgnat, que havia sido contratado pela universidade como meu substituto, e ele era alguém que eu já tinha admiração, e no qual já havia escrito sobre, e consequentemente havia conhecido ele na Europa há alguns anos antes. Ele era um critico com um espirito de explorador cujos métodos sugeriam algum tipo de conexão com os de Manny. Eu me lembro de ter mencionado a Brooks Riley, o editor assistente da Film Comment na época, que nós três tínhamos todas as características necessárias de uma colônia de cupins bem enraizada.

E foi graças a Ray que eu finalmente consegui passar no meu exame de direção em Fevereiro de 1978. Logo após ele ter conseguido passar no seu exame, ele me deu uma carona para o Departamento de Veículos Motores em Oceanside, e me deu um bom coaching pessoal de preparação para o teste, e até mesmo me forneceu um pouco de Valium (Algumas horas depois de ter concluído o texto, quando o dia começou a escurecer, eu convenci ele a ir numa sessão comigo do filme NAS ONDAS DE RÁDIO (1977), de Jonathan Demme, no qual nós dois gostamos, em um cinema localizado perto do mar e no qual anteriormente servia de palco para uma igreja.) Não muito tempo depois eu, Ray, e David Ehrenstein começamos a colaborar em um projeto intitulado ‘’Obscuros Objetos de Desejo,’’ uma discussão ensaística sobre cinema não narrativo, escrita para ser publicada pela Film Comment, e este projeto foi inspirado justamente pelas entre Manny e Patricia, embora nós não tenhamos tido sucesso em convencer eles a participarem.

Então, na próxima primavera, quando eu estava tão adiantado no processo de escrita de Moving Places que eu já queria mostrar certas partes do livro para meus amigos, e pedir também um feedback sincero deles. Eu sondei Manny para esta tarefa mas ele não queria fazer isso. Patricia aceitou o convite, mas eventualmente só conseguiu cumprir a sua promessa indo duas vezes de tarde na minha casa de tarde e lendo as paginas que escrevi diante da minha própria presença. (Quando eu havia enviado meu material para ela, o mesmo foi entregue a mim pelo Manny com um pedido de desculpas conciso de que ambos estavam atarefados demais para poder ler.)

Naquele momento, o meu relacionamento com Manny havia ficado um pouco mais conturbado. Ray teve que voltar para Inglaterra durante a metade do segundo semestre, e eu havia sido contratado para cobrir temporariamente suas aulas por um período de algumas semanas. E após isso, quando o presidente do departamento me pediu para que eu continuasse dando essas aulas durante a parte que faltava do semestre, algo dentro de mim finalmente se rebelou contra os sentimentos de rejeição que eu havia sentido anteriormente, e com isso recusei o seu convite, adicionado (de forma bem corajosa da minha parte) de que eu tinha uma enorme repulsa por este departamento ( e eu disse isso enquanto estava pensando em muitas coisas ao mesmo tempo, como o fato de que aquele lugar, no final do semestre, havia esquecido de considerar minha aplicação inicial por emprego, me obrigando a insistir a eles para fazerem uma reunião adicional para que minha ejeção do programa pudesse ser oficializada.) Essa resposta minha coincidiu com a abertura de uma retrospectiva importante das pinturas de Manny no Museu de Arte Contemporâneas de La Jolla, o que provou ser um acontecimento bem tenso por diferentes motivos (uma mulher que vivia muito longe de lá, e que havia escrito para mim que ela pensava que me amava, apareceu para este evento sem qualquer tipo de aviso prévio, e passou a ignorar minha presença durante grande parte da tarde.) Manny estava irritadíssimo com a minha fala sobre o departamento, mas eu só soube disso através de outras pessoas. Quatro dias depois, eu decidi pedi uma reunião entre nós com rumo a uma pacificação, e nós dois nos reunimos em um ambiente neutro, em uma lanchonete da Denny´s, e dei o meu melhor para conseguir uma reconciliação entre ele, que levou a um resultado ambíguo. Mais ou menos seis semanas depois, motivado por uma oferta generosa de uma ex-estudante de Manny, Carrie Rickey, em compartilhar comigo um estúdio que ela tinha em um apartamento em Soho, eu decidi me mudar para Nova York.

 

<><><><><><><><><><><><>

Aspectos autobiográficos possuem um papel ambíguo e incerto dentro do trabalho de Farber. Apesar de algumas piadas e sacadas que ele colocou em seus textos, como a menção passageira do fato de que seu neto, Jerry Farber, apareceu na versão de MACBETH de Orson Welles, ao escrever sobre os melhores filmes do ano de 1950 para a revista The Nation (publicada no dia 13 de janeiro de 1951), as referências de caráter pessoal são, em grande parte, eliminadas decisivamente de suas críticas. Mesmo assim, grande parte de suas pinturas feitas no final dos anos 70 e no início dos anos 80 possuem traços claramente autobiográficos, como por exemplo, a obra ‘’Birthplace: Douglas, Ariz (1979),’’e ‘’Nix (1983)’’ (uma vasta e complexa meditação sobre as comédias de Preston Sturges, em relação com a vivência de Farber) ‘’ For Fontaine Fox (1983)'' (uma homenagem a Toonerville Trolley, uma tira de quadrinhos que ele lia na infância) e ''Tuy was Great (1984) "(uma obra sobre sua visita a Espanha). E na seção ''Biografia’’ que aparecia anualmente nos catálogos de suas exposições, a descrição, escrita pelo próprio Farber, de sua vida é tão pessoal, tão descompromissada em sua sinceridade, que atinge um caráter confessional de sua visão sobre sua própria trajetória. Aqui, por exemplo, estão quatro trechos completos publicados no catálogo do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles para acompanhar uma retrospectiva enorme sobre Farber, que foi realizada entre 12 de novembro de 1985 e 9 de fevereiro de 1986:

 1932- Pais se mudam para Vallejo, California, para poderem ficar perto de seu filho favorito, Leslie, um estudante de medicina. Que também consegue tocar saxofone e algumas clarinetas em uma orquestra de jazz local, chamada Kenny Clark´s, e já teve um breve status de celebridade como atacante na equipe de futebol americano no ensino médio. A loja de vestidos, cujo donos são seu pai e mãe, tem um sucesso robusto com prostitutas, que representam uma profissão importante dentro desta crescente cidade naval.

1949- Escreve sobre arte, jazz, móveis, e filmes, para a revista The Nation sob a vistoria de seu editor literário, Margaret Mashall. Após trabalhar brevemente na livraria da revista, consegue a função de critico para a revista Time a partir do momento em que James Agee vai a Hollywood para escrever para John Huston. Ele dura mais de seis meses lá antes de ser demitido após uma série de críticas medíocres, entre elas críticas sobre FÚRIA SANGUINÁRIA (1949) de Raoul Walsh, AMARGA ESPERANÇA (1948) de Nicholas Ray, e ALEMANHA, ANO ZERO (1948), de Roberto Rossellini.

1972- Começa a incorporar linhas de pressão e linhas pisadas, feitas com um fio molhado de tinta, no interior de suas pinturas abstratas. Feito com a junção de placas pequenas de papel colorido, e com o uso aumentado de giz colorido, o objetivo é gerar uma densidade maior. Show feito Solo: O.K. Harris, cidade de Nova York; Universidade Estadual de San Diego. Primeira viagem para a Europa, passa duas semanas no Festival de Cinema de Veneza. Assiste a filmes de Fassbinder e de outros jovens realizadores europeus, e ,com isso, cria um curso sobre ‘’Cinema Radical’’ na universidade de San Diego, baseada em sua experiência. Realiza duas palestras no [Pacific] Film Archives sobre Straub e Fassbinder; realiza um seminário na Universidade de Nova York, monitorado pela Annette Michelson, concentrado na mudança de foco de seu trabalho crítico de filmes de ação hollywoodianos para o cinema experimental de cineasta nova-iorquinos, e de filmes de diretores radicais fora dos Estados Unidos. Encontra pela primeira vez o cineasta Jean- Pierre Gorin, que posteriormente iria se juntar a Universidade de San Diego, se tornando quase que um ‘’segundo cérebro’’ de Farber.

1982- Realiza uma longa entrevista com editores da Cahiers du Cinéma, e com Jean-Pierre Gorin, que aparece na edição de abril da Cahiers junto com a sua pintura, ''A Dandys Gesture (1977)'', na capa principal da revista. Acidentalmente queima o estúdio da Patricia após fazer café em um prato barato quente. Uma briga com os policiais do campus o leva a ser preso dentro da estação policial do campus enquanto este incêndio acontece; um longa batalha no tribunal chega a punição por ter resistido a ser preso, e ele tem que realizar mais de quarenta horas de escrita remedial para estudantes calouros da universidade. Paralelamente, exibições artísticas de suas obras ocorrem no Richard Bellamy´s Oil and Steel e em Diane Brown em Washington D.C.


Em uma nota de rodapé de um ensaio meu sobre o trabalho ‘’movie paintings’’ de Farber (pinturas feitas por ele e influenciadas por filmes que ele assistiu), escrito em 1983 e publicado dois anos depois na revista New Observations, eu notei que o relacionamento entre escrita autobiográfica e a escrita de crítica de cinema é um assunto simultaneamente complexo e inevitável, e mesmo assim as regras de etiqueta social que governam a maneira que essa conexão, na qual exige e obriga uma supressão de qualquer elemento autobiográfico na maior parte de textos críticos do ''mercado,'' e praticado por escritores bem menos conhecidos do que figuras como Pauline Kael ou Gore Vidal, faz com que essa temática entre em uma relativa obscuridade. Considerando o sentimento preciso do próprio Farber sobre sua posição especial em relação a crítica de cinema e a pintura, parece ser compreensível que apenas a obscuridade relativa e o caráter hermético de suas pinturas iriam fornecer os elementos necessários que permitem uma adoção confortável de um modelo autobiográfico de escrita; enquanto o reconhecimento relativo de seu trabalho como crítico de cinema, combinado com suas estratégias  particulares de retórica, fazem essa tática parecer menos sustentável de ser impressa.

Considerando a dialética de abertura e fechamento que age de forma penetrante em seus trabalhos, não é difícil de entender porque ele se recusou a aparecer no segunda longa-metragem dirigido de forma solo por Jean-Pierre Gorin, ROUTINE PLEASURES (1986), um filme que ele gosta bastante, mesmo considerando que metade do filme é diretamente sobre ele.

Com raras exceções, Farber também evita mencionar o nome de outros críticos de cinema em seus textos. (Quando ele sarcasticamente cita Robin Wood em um texto seu sobre PARAÍSO INFERNAL (1939) no final de um ensaio seu de 1969 sobre a trajetória de Howard Hawks, a citação em si permanece anônima.) O único trabalho dele que é sobre outro crítico de cinema, o único que conheço, é uma crítica de 1958 sobre um volume do trabalho crítico de James Agee, e esse ensaio representa uma das avaliações mais balanceadas que existem de um critico sobre outro , mas neste texto ele também culpa o seu amigo falecido por se aproveitar do ‘’entusiasmo de outros críticos’’ enquanto o chama de ‘’ um mestre de criar um papo furado extenso, característico de críticos de cinema, com seu uso de números para definir qualidade, e de suportes falsos.”

 Talvez o argumento mais famoso contra Farber é de ele ser um crítico que escreve de maneira ''impressionista'', o adjetivo mais sujo dentro de todos os adjetivos encontrados na academia. Esse argumento é feito por Robin Wood em seu livro Personal Views, no qual uma página e meia se concentra exclusivamente nos múltiplos erros dos detalhes visuais apontados em passagens de Farber sobre filmes como A MARCA DA MALDADE (1958) de Orson Welles, e WEEK-END À FRANCESA(1967) de Jean Luc Godard em sua introdução para ‘’Negative Space’’, seguido por estes três comentários: 

                                ''... O capítulo inteiro, com seus processos associativos extraordinários, criados entre seus elementos, parece beirar muito perto de ser um fluxo de consciência do autor, e vale a pena ler como um exemplo do máximo que alguém pode se safar como escritor, especialmente ao usar tanta ostentação. Esse tipo de escrita ‘’impressionista’’ diz muito sobre o que Farber pensa sobre seus leitores, da mesma forma como diz sobre suas percepções e maneiras particulares de experienciar cinema. É assumido que seus leitores também não irão conhecer os filmes que estão sendo discutidos, mas isso não será um empecilho para poder participar de uma discussão sobre eles, contudo que seja realizada de maneira tão vaga que se torna quase não desafiadora em sua abordagem. 

Essa última palavra parece ser o elemento chave para mim. Se a distância radical de Farber com o que é tradicionalmente visto como estilo de crítica de cinema acadêmica pudesse ser encapsulada em uma única ideia, seria a noção de que nada que ele tem a oferecer como crítico pode ser verificado ou até mesmo ''confrontado'' em si. A mesma coisa é verdade, é claro, do poema de John Keats ‘’ON FIRST LOOKING INTO CHAPMAN´S HOMER,’’ assim como a maior parte do trabalho crítico de Agee, e se o status de Agee entre estudiosos acadêmicos é quase tão baixo quando o do próprio Farber, isso pode dizer mais sobre as limitações de certas metodologias de ensino acadêmico, de suas teorias, e de seus princípios de precisão e verdade, do que diz sobre as limitações de Agee e Farber. A força de ambos escritores é, acima de tudo, vinda de suas qualidades literárias; é apenas uma casualidade da ignorância do modelo convencional utilizado que o trabalho de Agee é classificado como “literatura’’ e o de Farber como sendo outra coisa diferente. Na verdade, poderia ser argumentado que a prosa de Farber, em seus melhores momentos, é ainda mais vigorosa, e cuidadosamente construída, do que a de Agee, e na maior parte consegue realizar com sucesso o trabalho de evocação, de sugestão, de análise e da mimética que ele se propõe a fazer. 

Ao situar o filme não em uma tela de cinema, ou em uma tela quadrada, mas na tela da cabeça ocupada pelo crítico hiperativo que assiste, Farber obrigatoriamente realiza uma conexão desta arte com seus vizinhos mais próximos, e também com seus primos de graus distantes, e o que emerge a partir dessa conexão particular revela algo sobre a complexidade de nosso mundo, e acima de tudo, da maneira como nós experienciamos ele. E isso é revelado de forma muito mais eficiente do que se ele escrevesse um questionamento objetivo, banal, se ele perguntasse por exemplo se uma atriz X estava fumando um cigarro ou na verdade apenas tocando seu dedo com a boca, em algum plano de um filme (um exemplo citado por Wood em seu texto). Enfrentando este tipo de imagem, um escritor como Faulkner também poderia, em teoria, pegar o detalhe errado também, e dizer que a atriz está fumando. Mas o que ele teria a dizer sobre esta imagem que ele ''sentiu'' que viu seria talvez mais importante do que se o detalhe era verdadeiro ou não.

Para escrever uma crítica de cinema que se coloca além do conceitos de ‘’verificação’’ objetiva,  é preciso definir o ato de escrever uma crítica como uma arte, e não uma ciência, e um processo que precisa ser definido em termos artísticos, e não científicos. Exercida usando seus próprios termos, sem referência a negócios de dinheiro ou a bolsas de estudo. Uma prática como esta desafia o uso de frases de efeito de críticos que podemos ser encontradas em materiais promocionais de filmes, assim como também em papeis e dissertações acadêmicas; se torna impossível na verdade, normalmente, de apropriar estar frases para um outro proposito além do qual elas foram feitas.

Se recusando a chegar a conclusões finais sobre qualquer coisa (um objetivo principal do mercado de crítica e da crítica acadêmica também) ela apenas pode se exercer e encontrar sua força e motivação no próprio processo de criação, com a esperança de ao menos oferecer uma certa equivalência, e não uma dominação, da arte em que está engajando. 

 

<><><><><><><><><><><><>

 

Eu estou tentando me lembrar, de maneira precisa e correta, sobre coisas importantes que aconteceram, mas eu não consigo ter certeza absoluta de que estou fazendo isso com sucesso: as memórias jogam seus próprios truques com esses resíduos emocionais que elas carregam, adicionando suas próprias ênfases e as vezes subtraindo qualquer tipo de elemento que não se encaixa. Não importa o que que realmente aconteceu, eu sei que eu nunca superei o sentimento de que fui, em algum nível, rejeitado por Manny. Uma parte desse sentimento apareceu novamente quando ele não me enviou nenhum tipo de resposta sobre o meu livro Moving Places após ter sido publicado em 1980, o que eventualmente provocou uma anotação irritada, minha, vinda de um sentimento de ferida (e  não lembro com clareza agora de como era), e que eu enviei junto de um ensaio meu sobre DA NUVEM Á RESISTÊNCIA (1979) do casal Straub/Huillet que havia sido publicado no final de 1982, e no qual era concluído com um tributo a ele e a Patricia. Isso eventualmente motivou uma ligação de desculpas dele para mim, talvez feita com ajuda de Patricia, na qual ele basicamente disse que não era que ele não havia gostado do livro, é só que ele gostava mais do meu trabalho como crítico. Ele também confessou que ele havia passado muito tempo de sua vida fugindo de coisas no qual eu havia descrito em meu livro, como por exemplo o Judaísmo, e o relacionamento meu com minha família, que era muito difícil para ele ter que lidar com esse tipo de material novamente. (E eu ficava pensando muitas vezes, o que seria da minha vida se eu tivesse nascido com um nome como Emanuel em vez de Jonathan.)

Anos mais tarde, eu senti o arrepio do mesmo sentimento de rejeição quando ele recusou a minha oferta de uma assinatura gratuita no Chicago Reader, mas dessa vez, felizmente, era apenas um arrepio. Ele disse a mim que ele estava agora se dedicando exclusivamente a pintura, e que ter que ler sobre cinema não era uma atividade tão fácil quanto antes. O que quer que seja o significado do que ele disse e a motivação dele ter falado isso pra mim, eu aceitei sua resposta. (e provavelmente era a verdade; no espaço inferior da parte quadrada branca de sua pintura ''Seed, Field.'' Feita em 1991, há uma mensagem, escrita quase como um grafite de rua, dizendo ''No film'' (Sem Filme, ou talvez Não Filme.). De tudo que eu me lembro, a ultima vez que Manny trabalhou em um ensaio cinematográfico foi no final da década de 1970, escrevendo sobre HITLER, UM FILME DA ALEMANHA(1977), de Hans-Jürgen Syberberg, o que foi um projeto que animava ele na época, mas um no qual ele nunca finalizou. É possível que a distancia relativa que ele tinha de cidades que mostravam muitos filmes no qual ele adorava, e também o sentimento resultante vindo deste distanciamento, e também de uma falta de proximidade com a ''cena cinematográfica'' de sua época, foram elementos essenciais para seu eventual abandono da escrita crítica.

É sempre fácil de esquecer o quanto tímido ele é, parecido com muitos outras figuras estoicas e fortes. Durante meu semestre de outono na universidade de San Diego, eu realizei uma exibição de NATAL EM JULHO (1940), de Preston Sturges, na minha casa em uma noite, e convidei ele para participar. Ele ficou tão sobrecarregado emocionalmente pela experiência que ele saiu da sessão sem palavras, após o termino do primeiro rolo. Eu posteriormente sugeri a ele que o filme parecia ser sobre a Grande Depressão americana, mesmo sendo lançado e se passando no ano de 1940. Algum tempo após esta exibição, enquanto tentava explicar a mim alguma limitação aparente sua, ele referenciou meu comentário anterior e disse a mim: ‘’Sabe, eu não sou alguém que sobreviveu a Grande Depressão. Não é o tipo de experiência que você realmente é capaz de superar no final.’’ Apenas semanas, ou meses depois, foi que eu finalmente descobri, após alguém contar a mim, que ele na verdade nunca havia assistido este filme de Sturges antes daquela noite, embora subsequentemente após aquela sessão ele ter realizado palestras em torno dele, mas estava envergonhado demais para admitir isto na minha frente.

Eu fiquei deslumbrado quando ele me contou uma vez que ele considerava sua demissão feita pela Revista Time em 1949 como um dos grandes fracassos de sua vida, e eu fiquei particularmente surpreso porque eu duvido de que ele iria ter conseguido fazer alguma impressão duradoura nos outros críticos daquela revista se ele não tivesse sido demitido (entretanto, ele pareceu concordar com a minha observação, e quando eu citei os seus ensaios sobre Sturges, Walsh*, e TAXI DRIVER, nenhum deles poderia de forma concebível aparecer em alguma edição da Time, e são os ensaios no qual eu considero com sendo exemplos de seus melhores trabalhos, e será que é um aspecto significante o fato de que todos estes três foram produzidos de forma colaborativa?) O sonho de conseguir conquistar um prêmio máximo é a premissa central de NATAL EM JULHO, e essa energia buscadora faz parte da energia da escrita de Manny, como um homem em busca de um prêmio tão esperado, mas em sua vida, eu suspeito, essa busca tem funcionado mais como uma maldição permanente. Condenado para sempre em atravessar as aguas marginais e obscuras da arte enquanto mantém a esperança de um dia ser lançado para o lado ''mainstream'' da cultura popular de entretenimento, com isso, o sucesso que ele teve em sua vida pode parecer uma forma de ridicularizar este mesmo sonho, e vice versa, por assim dizer. As suas posições críticas, tão importantes para seu estilo de escrita como a composição era importante para a criação de suas pinturas, sempre almeja de forma paradoxal a uma noção de atirar ‘’no centro do alvo,’’ uma ideia que apenas pode existir dentro de um contexto mercadológico, aonde ideias e objetos estão em competição perpétua pela atenção total do espectador. Ele têm vivido a maior parte de sua vida dentro desta contradição, assim parece ser, a contradição de uma tendência realista na construção de paradigmas formais, de ser um Horatio Alger (poeta americano, que escrevia sobre meninos pobres que atingiam a boa vida da classe média através de um duro esforço) que projeta suas fantasias de se tornar uma estrela de cinema através do relacionamento abstrato que ele inventou entre um biscoito de caramelo junto de um filme que ele adorou assistir. Brilhantemente se misturando dentro de passatempos banais e doméstico típicos da cultura norte americana, que em grande parte tem sido ignorado historicamente pela crítica, os textos e as pinturas de Manny expressam ao mesmo tempo um amor querido pelo forma que o mundo se apresenta a seus olhos, e ao mesmo tempo, de forma bem trágica aliás, exclui a possibilidade de conquistar estratégias radicais para poder mudar este mundo.

De qualquer forma, é bem fácil perdoar ele agora, porque qualquer que seja as coisas que ele fez ou não fez, ele me convidou para ir junto com ele em uma viagem de dois dias para Los Angeles, em dezembro de 1977, apenas cinco dias após eu ter oficialmente dado minha ultima aula no departamento da universidade. Eu suponho que isso era a maneira particular dele de compensar pelo fato de eles não terem estendido meu contrato, e isso foi, ao meu olhar, uma forma bem gentil de fazer esse gesto. Eu o acompanhei dentro de seu carro para ir ver uma palestra que ele deu sobre a história das pinturas, em uma escola de arte local. Um pouco antes de sua palestrar começar, ele sofreu um ataque de pânico súbito que depois confessou para mim no estacionamento da universidade; ele ficou horrorizado ao descobrir que seu par de meias não combinava, e eu dei o meu melhor para tentar convencer ele que ninguém iria notar isso, e realmente ninguém notou. Após o término de sua palestra, nós fomos a um cinema em Los Feliz assistir juntos O AMIGO AMERICANO(1977), de Wim Wenders, e passamos a noite dentro de uma linda casa de montanha, que pertencia a um amigo dele, e também a um escultor e sua esposa. No dia seguinte, eu o acompanhei em diversas tarefas que ele tinha que fazer, e também seus encontros marcados com amigos e visitas de galerias; de tarde, nós fomos almoçar com uma amiga conhecida nossa, e fomos juntos com ela assistir CONTATOS IMEDIATOS DO TERCEIRO GRAU(1977), de Steven Spielberg, em uma sessão no Cinerama Dome, após o filme terminar ele me deu uma carona para Del Mar, e nós ficamos conversando durante a viagem inteira. Foram dois dias muito calorosos e agradáveis para mim, e o retorno de duas horas no carro foi algo que me deixou imensamente feliz, é a memória mais alegre que tenho de nós dois juntos.

A experiência inteira foi como se eu tivesse viajado no tempo, na década de 1940 e 1950 especificamente, quando eu acompanhava meu pai em seus rituais noturnos, praticados cinco vezes pode semana, no qual ele dirigia em seu carro atravessando o rio de Florence para poder chegar aos cinemas das cidades de Sheffield e Tuscumbia, aonde ele ia para pegar e guardar todos os recibos existentes de ingressos que foram vendidos durante o dia, e após fazer isso ele retornava para Florence. Era um privilégio especial para mim, e para meus irmãos, de poder acompanhar ele nessas viagens semanais, que duravam mais de uma hora e sempre cobriam o início do entardecer.

 (E eu nem vou escrever aqui quais foram as primeiras impressões de Manny na época sobre O AMIGO AMERICANO e CONTATOS IMEDIATOS DO TERCEIRO GRAU, que ele me contou durante nossa viagem de carro para Del Mari; isso aqui é vai ser um segredo nosso)

  *"Raoul Walsh: 'He used to be a big shot,'"’ Artforum (Novembro de 1971),  e Sight and Sound (Inverno 1974/1975). 



Versão original em inglês: They Drive By Night


domingo, 13 de agosto de 2023

O Fim e o Príncipio

 


Algumas anotações imediatas após a sessão de 35mm na Cinemateca do MAM, dia 12 de Agosto de 2023:

Se eu estou filmando o outro é porque eu não me conheço e eu preciso conhecer o outro para me ver. 
Cinema é a minha forma de viver porque é a forma que eu tenho de me relacionar com o outro. 
Tem outras formas mais sadias também, mas a minha é o cinema. - Eduardo Coutinho.

O cinema de Eduardo Coutinho tem como método principal a exploração de uma alteridade de vivência subjetiva. Diferente de outros cineastas documentais que mesclam um estilo autobiográfico e confessional em suas obras (podemos citar aqui o cinema de Petra Costa, por exemplo), o seu cinema, em especial suas obras feitas após o lançamento de Cabra Marcado Para Morrer (1984), se baseiam inteiramente no principio de que o entrevistador deve entrevistar um ser humano em que nada se parece com ele, seja em pela sua classe social, sua religião, sua etnia, ou ambiente geográfico habitado. 

Em Fim e o Príncipio (2006), Coutinho começa sua narração dizendo que o filme foi feito sem um roteiro, sem uma pesquisa prévia, e sem qualquer tipo de planejamento. Apenas com uma equipe de filmagem durante duas semanas de estadia na São João do Rio do Peixe, em Paraíba, para entrevista os moradores mais velhos da região. Os relatos gravados pela câmera de Coutinho são deslumbrantes pela falta de distância em que a câmera se coloca perante seus personagens, os seus close-ups transformam cada rosto, cada figura em uma paisagem de anos, décadas vividas e enraizadas na pele.

O método de investigação é menos para denunciar alguma coisa, seja a miséria, seja a pobreza, seja qualquer tipo de indignação social, mas mais como uma ferramenta de criação de uma linguagem fabular, a vida de cada entrevistado se converte em ficção, em narrativa. E o processo de contar a história de suas vidas é essencial a criação de um registro, não para transformar seus personagens em objetos de estudo (o que seria abominável, já que criaria um senso de hierarquia intelectual ou social no espectador que assiste) mas sim para dar a eles uma espécie de tela, uma maneira de inscreverem suas visões subjetivas sobre si mesmos, e sobre os seus valores, sem algum tipo de julgamento moral.

Essa ideia de inscrição pode ser vista na cena em que uma das moradoras escreve uma cartografia das cidades que ela e sua família viveram, criando uma espécie de arvore da vida genealógica que consegue estruturar todo um campo de relações e convivências. Relações são a chave dos personagens em seu trabalho, e não é a toa que vemos muitas avós, pais, maridos, esposas e filhos ao redor. 

A ideia de criar uma cartografia histórica que não é pautada pelo panfletismo, pela obra ''informativa'', mas sim apenas e exclusivamente pelo relato faz com que o espectador se coloque em uma zona dupla: Tudo que vemos são a forma como os personagens se enxergam, e a memoria, para qualquer ser humano, pode ser traiçoeira, e não corresponder exatamente a realidade. Mas o que a obra de Coutinho consegue concluir, de maneira magnífica, é que a verdade dos relatos e a potência de significado que eles carregam já é o suficiente, não é preciso nenhum dado de objetividade ou de informações paralelas para que o afeto de suas histórias tenham força. A fabula se torna em seu cinema uma forma de conhecer o outro. De se inscrever no mundo. O ser humano realmente se torna humano pela capacidade que tem de fabular sua trajetória no planeta. No cinema de Coutinho, o rosto humano se torna uma paisagem, um mapa para localizar linhas e traços habitadas durante décadas. O registro do tempo se inscreve no corpo, na forma da dicção de cada fala, e na maneira como cada um se apresenta.

A pergunta chave que move o cinema de Coutinho desde Cabra Marcado Para Morrer possuem uma simplicidade desarmadora: O que é viver? Como é viver em uma comunidade, em um país, em uma região? O que é criar uma fábula, uma narrativa oral que consegue ser mais verdadeira que qualquer objetividade ''realista'' em sicomo o ser humano se define, que personagem nós somos para nós mesmos

Um dos momentos mais comoventes de Fim e o Principio é quando um dos entrevistados, um homem que vive sozinho em uma casa do sertão, relata sua trajetória antiga como poeta, e recita um dos poemas que ele havia composto em sua juventude, e dentro desse poema podemos a forma como ele consegue dar vasão aos seus sentimentos sobre mulheres, sobre o coletivo feminino de sua vida (sua mãe, as mulheres que ele amou) de forma que ele cria um registro de autoexpressão, de autoafirmação, que faz com uma vida inteira possa se revela em alguns minutos diante nossos olhos. 

E essa é a beleza do cinema de Coutinho: Mostrar o ser humano como fabulador de sua vida, a criação oral de uma linha narrativa que abrange classes, geografias, casamentos, amores, dores, fracassos e sucessos, e que o individuo desenvolve um processo emancipador de se tornar dono de sua própria história. A linguagem como forma de libertação do humano para definir seu ser, seus afetos, e sua mapa de relações interpessoais.  


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Sobre o vazio.



A vida de Jeanne Dielman é marcada por um gramática de rotina e repetição. Todos os dias, ela cuida de sua cozinha, lava pratos, corta batatas, aquece o fogão, senta com seu filho para o jantar, abre portas, limpa os pratos do filho, fala com ele antes de ele dormir, abre outras portas, recebe todas as quartas (eu acho) clientes no qual ela faz sexo por dinheiro, vai para uma loja tomar café, cuida de um bebê de uma vizinha, e se mantêm em constante movimento.

A ideia de movimento é cara ao cinema da Akerman, e não é a toa que Jeanne Dielman já foi classificado como sendo um action movie por certos críticos, toda a linha sucessiva da rotina de Dielman é feita para evitar não ter o que fazer, evitar esse vazio de uma vivência doméstica opressora que impede que haja qualquer desejo mínimo que não esteja localizado em cuidar de afazeres pessoais e que não seja direcionado a satisfazer um outro (seja seu filho, os clientes no qual ela faz sexo, o bebê da vizinha, todos seres no qual Dielman é definida pelo seu potencial de satisfação de suas necessidades), a performance quase bressoniana de Delphine Seyrig possui uma composição rígida, mecanizada em um fluxo de ações que faz com que ela seja uma representação cinematográfica da definição que Simone Weil escreveu sobre o poder da força no protagonista do poema Ilíada, de Homero:

                              
'''O verdadeiro herói, o verdadeiro sujeito, o centro de Ilíada é a força. 
A força empregada pelo homem, a força que escraviza o homem, 
a força na qual a carne do homem desaparece. 
Neste trabalho, em grande parte, o espírito humano é modificado por completo 
pela sua relação com a força, como se afogasse dentro dela, 
cego, pela própria força no qual ele imagina que consegue dar conta, 
deformado pelo peso da energia que ele se submete.''

O poder que subjuga Dielman é responsável pela opressão sistemática de milhões de mulheres ao redor do mundo, mas esse poder não emana em si de uma ordem, de um outro, ele é internalizado, aglutinado, engolido involuntariamente, a imagem do ser humano moldado pelas convenções, pelas regras de um sistema que a coloca como tendo seu sentido de vida o papel de quase não existir para si mesma. Uma figura maquínica em sua repetição.

E essa opressão ocorre de forma regular em sua vida, até o momento em que não ocorre. Em certo ponto, pequenas rachaduras entram em seu devir usual, ela esquece de aquecer direito sua comida e queima suas batatas, ela anda para um mesmo lugar sem motivo, ela esquece de apagar as luzes do quarto ao sair, ela acidentalmente deixa a colher cair no chão. Esses pequenos momentos são como partículas de uma bomba atômica. Que definem a estrutura da obra até chegar ao seu clímax, no qual Dielman mata um cliente com um par de tesouras na cama após o sexo, e fica no plano final do filme em completo silêncio, ensanguentada na sala de estar de sua casa. 

O assassinato como quebra de ruptura de toda a convenção social que definia a estrutura o filme é menos um ato de rebelião da personagem, mas um de autoexpressão da mesma ferramenta maquinica  que ela utiliza em seus afazeres domésticos, a morte é feita mecanicamente, sem emoção, sem algum sentimento de satisfação ou alegria posterior. Ela é a única linguagem que a personagem tem a oferecer para escapar dessa não-vida. E o silêncio da protagonista é menos um conflito do que uma entrada ao abismo do vazio. Já que sua rotina não existe mais, não tem como ela existir. O vazio que ela tanto evitava agora é presenciado. A completa negação do próprio desejo como uma prática rotineira agora desapareceu. Sem os pratos, sem as batatas, sem o seu filho, sem os seus homens, Dielman não existe. De forma estranha, é pelo assassinato que Dielman finalmente consegue encontrar uma forma de ser ela mesma, porque é o único momento em que ela realiza uma escolha, cria uma linha divergente, se revela, e agora o que resta é um vazio a ser enfrentado, um vazio que só pode existir pela emancipação de um desejo que existe além da ideia de satisfazer o outro. 

O vazio não deve ser algo a ser evitado, mas enfrentado diretamente como uma forma de criar uma linguagem, uma linha de ruptura, uma forma de encarnar o seu próprio desejo. A tragedia de Jeanne Dielman é de sua heroína viver em um sistema, uma sociedade, em que ela só existe a partir de um devir que abomina o vazio, o antagoniza, o vilifica, ele nunca é expurgado, e deve permanecer apenas encrustado dentro de seu ser. 




domingo, 6 de agosto de 2023

Festival Ecrã 2023- Algumas anotações.

 


O Festival Ecrã é um dos eventos mais importantes de exibição de cinema experimental no Brasil, eu tenho acompanhado sua trajetória desde 2018 e este ano, devido ao espaço curto de tempo de sua etapa presencial (apenas 4 dias, diferente dos 10 dias disponíveis em 2022 e 2019 pré-pandemia) não pude assistir muitas obras, mas escrevi algumas anotações breves sobre certas obras que assisti em sua 7 edição.

Pessoalmente, foi um processo um pouco mais ''fácil'' de acompanhar a edição deste ano pelo fato de não estarmos em um ano eleitoral, e termos conseguido a vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2022, isso trouxe um certo alívio em questão de imaginar um futuro para editais de cultura e para a sobrevivência (nos próximos anos, ao menos) de festivais brasileiros de cinema experimental, porém, eu escrevo isso ainda de forma melancólica por observar que o festival foi obrigado a reduzir seu número de dias habitual, mas isso felizmente não impactou a qualidade única e distinta que as obras escolhidas apresentam. 

Aqui abaixo, uma listagem de filmes da edição deste ano que me marcaram, estes não são todos os filmes que vi na edição deste ano, mas são o que no momento da escrita deste post mais estão presos em minha memoria



A ROSA AZUL DO ESQUECIMENTO | The Blue Rose of Forgetfulness | Lewis Klahr | Estados Unidos | 2022 | 64 min. 

Este foi o primeiro filme de Lewis Klahr que assisti na minha vida, o que me impressionou foi como a bricolagem de seu uso de comic-strips para compor um fluxo narrativo que existe não pela apresentação de uma linha clara, mas por processos gráficos de uma criação de analogia. O filme apresenta certos movimentos do cinema de gênero americano( romance, thriller, filme de super-herói) para poder compor uma poesia feita de destroços, de um processo de colagem de elementos que em teoria existem separados e dispersos de si, mas que pela combinação gráfica criam uma melodia romântica muito única e impactante, essa foi minha introdução a obra de Klahr e mal posso esperar para ter a chance de assistir seus outros filmes.


ESPAÇO LIMINAR | idem | Gabriel Papaléo | Brasil | 2023 | 75 min

Como um álbum visual de estética cyberpunk carioca, o primeiro longa metragem de Papaléo consegue criar um senso de ambiência melancólica com sua caleidoscópica fotográfica do uso de neon, e pela sua trama semi-Alain Resnais de um homem a procura de uma memória idealizada de sua amante. O filme tem mais sucesso quando ele se entrega em ser puramente um exercício formal de experimentação, quando se apresenta como um álbum visual atmosférico, do que quando quer explicar seu mundo em termos narrativos. Como uma experiência sensorial de fantologia prismática de um futuro (e passado) distópico, o filme representa uma das exibições mais energizantes e cativantes que tive no festival. 


A LONGA VIAGEM DO ÔNIBUS AMARELO | idem | Júlio Bressane, Rodrigo Lima | Brasil | 2023 | 432 min. 

A trajetória de Bressane e suas obsessões coladas dentro de uma cartografia audiovisual deslumbrante, uma jornada de 7 horas cujo acumulo é a experiência de uma vida vivida em sua integridade, uma poesia do barco humano em busca do desconhecido, ou como o próprio Bressane disse após a sessão, a busca pelo ''nada.'' Acho que não vou ter sentimentos tão tocantes quando percebi que, após mais de quase 8 horas de ficarmos sentados na Cinemateca de MAM, quase ninguém abandonou ou saiu mais cedo do desafio colossal que esse filme represente. Uma meditação do caráter coletivo transformador de estar em uma sala de cinema, de ter uma fé na imagem, nos caminhos inéditos e desconhecidos que esse ônibus amarelo pode nos levar. 



UMA NOITE PERIGOSA NA ILHA DE VULCANO | idem | Darks Miranda | Brasil | 2023 | 40 min.

Uma investigação arqueológica construída a partir de imagens de arquivo de cenas de paisagem de filmes de ficção-cientifica da década de 40-60, este média-metragem dirigida pela artista multidisciplinar Darks Miranda é uma continuação de suas preocupações temáticas encontradas em seu trabalho de escultura: a criação de um universo sempre a deriva, alienígena pela desolação completa da figura do homem, a brutalidade de seu inventário e o uso de uma sonoridade ominosa que ressalta a característica infernal de um estado liminar apocalíptico, do fim da humanidade e um retorno as primórdios da Terra. A natureza existe antes, e além, do humano, e o filme apresenta essa ideia em um nível sensorial cativante. 



VERMELHO BRUTO | Idem | Amanda Devulsky | Brasil | 2022 | 203 min. 

Uma cena chave de Vermelho Bruto se encontra na metade final do filme, estamos vendo uma gravação feita por uma das mães protagonistas, no momento em que o resultado das eleições de Outubro de 2018 surgem na televisão de sua casa, e ouvimos um dialogo entre ela e sua filha, explicando de maneira apaziguadora como serão os próximos anos sombrios no Brasil, tentando ajudar sua filha pequena a entender um contexto político abominável ao mesmo tempo que tenta manter sua cabeça erguida e dedicada a suas responsabilidades domésticas. Enquanto ouvimos este dialogo, o câmera se encontra em uma mesa da sala de estar (eu não lembro exatamente a qual objeto ela se foca, se é um vaso, um rádio, ou um prato de jantar, minha memória está um pouco falha mas consigo visualizar a cena), e nós, os espectadores, não vemos nem a figura da filha ou de sua mãe enquanto a cena se desenvolve. 

Esse momento do filme de Amanda é a exemplificação perfeita da abordagem formal que a cineasta usa para contar a história destas mulheres: a criação de novos caminhos de ver e ouvir. A radicalização do que é permitido ouvir ou escutar em certo momento. E a criação de uma linguagem que força o espectador a criar um próprio espaço mental para abrigar este fora de campo, uma leitura participativa que tira o estado de inércia e conforto, especialmente pela longa duração que abrange diversas personagens em diferentes contextos geográficos e sociais. 

Se trata, um pouco parecido com o filme de Bressane, da criação de uma cartografia que cria novos modelos de percepção de pensar a ideia de um filme home-movie, de pensar a não-divisão da política em contextos domésticos e pessoais, e a textura de suas imagens traz uma maneira inventiva de retratar o aglutinamento constante desses elementos na vida brasileira. Desse não-conciliamento com o facismo macro e micropolítico. 

É um dos melhores filmes do festival e uma descoberta extraordinária que tive esse ano, e uma vitória artística não só da cineasta mas também de Darks Miranda, coautora da montagem do filme. 



TESTEMUNHAS SILENCIOSAS | Mudos Testigos | Luis Ospina, Jerónimo Arteaga | Colômbia | 2023 | 78 min. 

O filme final do cineasta Luis Ospina é composto pela montagem de doze obras do cinema mudo colombiano para criar uma narrativa imaginária: um romance impossível entre um casal de classes sociais diferentes. Um melodrama clássico que entre em processo de combustão interna na seção final do filme. O que mais me impressionou foi como o filme utilizou uma estrutura linear e clássica em sua composição narrativa para poder, na sua seção final, entrar em um caminho disperso, fragmentado, inconclusivo, que pode refletir em si o caminho sociocultural aberto do próprio país. Meu conhecimento da história da Colômbia é limitado, e com isso eu não posso fornecer uma declaração se esta ruptura formal sinaliza um sentimento de catarse fílmica em relação a própria ruptura que o país sofreu, mas como um conto romântico que termina em uma abertura infinita de possibilidades estéticas e de reformulação de arquivos históricos, é uma obra que dificilmente conseguirei esquecer. 



FESTIVAL ECRÃ 2024: Interview with Matilde Miranda Mellado, director of Salaman Extensor.

  One thing that really touched me about your film was this theme of trying to search for  a way to express an emotion that is very internal...