Como surgiu Infinito Ábaco? Como foi a
concepção da ideia do filme até seu momento de gravação
BRUNO: Então, o filme ele se comunica bem com um curta-metragem que eu havia realizado há alguns anos, e que era um vídeo de cinco minutos meio em estilo Found footage, sobre alienígenas e teorias da conspiração, e era um curta-metragem que eu achei bem divertido de fazer. E aí eu decidi expandir um pouco dessa linha estilística no Infinito Ábaco, que não é um filme de Found footage, mas era uma primeira ideia inicial, e acabou que o filme se tornou um filme mais engraçado, um filme de personagem né? Ele se tornou um Mockumentary desse personagem, interpretado por mim mesmo, se gravando.
JOÃO: É, eu acho que a concepção geral do filme veio de uma junção de interesses antigos e obsessões particulares nossas no momento que a gente estava desenvolvendo ele, a gente estava assistindo na época muitos filmes do Jean-Claude Rosseau e do Luc Moullet, e a ideia nossa era tentar fazer um longa de comédia que se estruturasse pela forma, e que fosse composto de uma carne de texto, de diálogo do personagem, bem extensa.
BRUNO: Sim, porque os filmes que a gente tinha feito antes, o Sombra (2021) e o Extremo Ocidente (2022), quase não tinham diálogos, e quando tinham eram compostos de narrações. Então o Infinito Ábaco é o primeiro nosso que tem a presença de grandes monólogos.
JOÃO: A ideia também era saltar de filmes que tinham quase que um ''palavreado,'' ou que tratavam muito da ideia da palavra gravado, para fazer um longa que fosse basicamente carregado por alguma espécie de verborragia. Uma comédia didática. E isso tem a ver também com a forma como ele foi feito, sendo um documentário de ficção cientifica. Então ele se propõe basicamente em experimentar gêneros e ideias até que se forme uma coisa concisa e própria, que não seja propriamente nenhuma de suas das referências originais. Basicamente esse foi o processo desse filme e da maioria dos filmes que fizemos até agora.
BRUNO: Acho que qualquer filme que nós fizemos até agora foi isso, a gente junta vários temas, várias ideias, e o resultado final se torna algo completamente diferente do ponto de partida. E esse filme além de ficção científica e documentário também é uma comédia né? Na hora que eu sentei para escrever os monólogos eu fiquei percebendo que não só as coisas faziam muito sentido entre si, como também se tornou um texto muito engraçado, é sobre um personagem que tem pouca consciência da graça que ele tem. E eu acho que talvez seja um pouco difícil, assisti esse filme, porque você não sabe se leva a sério ou não o que ele tá falando.
Essa questão do gênero é muito fascinante porque uma coisa que eu percebi nos filmes da produtora de vocês, a mbvideo, é que todos os seus longas lidam com algum tipo de gênero cinematográfico específico: você tem o gênero meio ''buddy film'' do Sombra (2021), o gênero de cinema de guerra em Extremo Ocidente (2022), e aqui além de ficção científica e o Mockumentary vocês têm a comédia. Então eu queria perguntar: É o gênero do filme que surge primeiro antes da ideia da narrativa em si? Como vocês veem essa questão do cinema de gênero?
BRUNO: Eu acho que a ideia do gênero nasce antes, mas ela não necessariamente vai se manter fixa até o final do desenvolvimento do filme.
JOÃO: O gênero são as convenções cinematográficas que fazem sentido de serem trabalhadas a partir de determinada ideia. Então eu acho que pra mim talvez ela venha depois, porque o que vem antes nunca é necessariamente uma pulsão de um longa, ou de um gênero especifico, são um conjunto de ideias e interesses próprios que a gente acaba percebendo elas dentro de uma teia de outras referências. E tudo isso vai levar você a convenções, a trabalhar com as convenções que existem. E isso não é um elemento necessariamente incontornável, mas é algo sempre bem vindo, principalmente nesses projetos em que a ideia principal é essa tentativa constante, que nunca é finalizada, de encontrar um balanço, uma mistura, ou uma ligação entre experimentos estéticos mais intensos e de narrativas mais reconhecíveis, com traços reconhecíveis de outros cinemas, produtos culturais, meios artísticos, e pensamentos mais ou menos eruditos, mais ou menos inteligentes.
Então é sempre essa tentativa de homogeneizar as coisas, e o gênero é uma convenção, o gênero é quando você percebe algum elemento que une um determinado grupo de coisas. Então de certa forma quando a gente se interessa em fazer filmes que tenham algum tipo de elemento mais reconhecível é difícil fugir de gêneros, porque são eles que determinam as convenções. Então me interessa sempre isso, os gêneros e os arquétipos. No caso do Infinito Ábaco, ele não lida necessariamente muito com a questão do arquétipo, ou até da questão de gênero, mas ele lida com essa ideia de quebra de expectativas, especialmente dentro de uma comédia, de uma quebra do que você espera ou não espera que aconteça dentro de uma determinada sequência estrutural e lógica do filme, que vai se explicando enquanto ele acontece, então o que fica são essas percepções alteradas de convenções e arquétipos.
JOÃO: O humor sempre é cruel, né?
BRUNO: É, eu acho que certo tipo de violência nesses festivais é aceitada e até esperada, certos temas também são esperados. E acho que fazer um filme como... eu sei lá, acho que comédia é um gênero que é pouco lembrado, especialmente quando é feito dessa forma com pouco orçamento...
JOÃO: E é um dos gêneros mais difíceis de se fazer, né? Porque você tem que encontrar uma maneira de ser engraçado com consistência, e isso não é muito fácil não, não que a gente seja, mas a tentativa de criar algum elemento cômico é sempre presente, sempre constante, apesar da seriedade intensa que você encontra em todos os projetos. Apesar de sermos duas pessoas que se levam muito a sério.
BRUNO: Fazer comédia é um ofício muito, muito sério.
JOÃO: Muito! E é um compromisso.
BRUNO: É muito difícil de fazer comédia em geral, mas eu acho... eu não acho que o filme é irônico. Eu acho que ele tem um personagem que é bem ''real,'' mas real do que certas pessoas que assistam o filme possam acreditar. É claro que o filme vai ter piadas, né? Porque é um personagem vivendo dentro de uma ilusão...
JOÃO: Ele é socialmente deslocado.
BRUNO: É, socialmente deslocado. Mas eu acho que o filme deve ser levado a sério como uma comédia, eu não sei se isso é um paradoxo, a ideia de ter que levar uma comédia a sério, dependendo do lugar aonde esse filme vai passar eu acho que as pessoas podem achar isso ridículo, achar isso tosco. Porque ao mesmo tempo que tem referências ao Rosseau, ao Moullet... e o Luc Moullet em si já é um cineasta completamente de humor, né? Ele tem palhaçadas no cinema dele que são dignas do cinema dos Irmãos Farrelly assim, mas já é um cara mais ''canônico,'' enfim.
Mas ao mesmo tempo em que o filme traz essas referências um pouco mais eruditas ou ''underground,'' ele tem também a liberdade de lidar com tópicos que são populares, seja da televisão ou da internet. Eu acho que até talvez o seu ponto de partida tenha sido vídeos do Youtube de terror, sabe, essas séries de terror que você encontra no Youtube, tipo o Marble Hornets, que hoje em dia todo mundo conhece mas era um seriado de terror que foi gravado lá nos anos de 2009 até 2012 pelo Youtube. Foi uma puta referência também pra gente e acho que deve ser levado a sério também.
Eu queria perguntar sobre a trajetória de vocês, porque vocês nesse momento tem oficialmente quatro longas metragens (com um prestes a ser lançado no futuro e já gravado) e também perguntar ao João, sendo um dos idealizadores e diretores principais da mbvideo, se ele sente que houve uma linha evolutiva indo de projeto a projeto, e se seu processo de fazer cinema mudou radicalmente desde a compleição de Sombra (2021), como foi isso tudo para vocês?
JOÃO: Eu acho que o importante de cada projeto é ir um pouco na contramão do anterior, e isso é um movimento natural, é um movimento comum que eu acho que acontece dentro de pessoas que produzem qualquer tipo de obra. Mas o que fica ao longo das nossas experiências é uma tentativa de criar novos obstáculos constantemente para nós, então ás vezes é difícil entender a evolução de um filme para o outro, porque os problemas que surgem acabam sendo novos, inéditos. Então a busca por um novo problema, um novo obstáculo, é sempre o motor principal.
BRUNO: E esses projetos vão ficando cada vez mais ambiciosos, querendo ou não, a não ser quando acontecem tipos de movimentos mais radicais, como no caso do Infinito Ábaco, que é um filme mais ambicioso mais de menor orçamento, de menor proporção comparado entre o Extremo Ocidente e o Sombra.
JOÃO: E ele foi feito durante meses.
BRUNO: É, foi filmado durante semanas mas foi desenvolvido durante meses. Então a gente vai ficando mais ambicioso, sonhando cada vez mais alto. Mas a questão do orçamento não melhora, ele continua sendo baixo, mas os sacrifícios continuam sendo maiores: mais atores, mais situações extremas...
JOÃO: Ambição e malícia. Os fatores que definem nosso filmes são ambição e malícia.
JOÃO: Não que a gente receba qualquer moral, mas realmente o objetivo é sempre ser mais ambicioso e mais malicioso. E eu acho que a malícia em geral ela é uma questão afetiva também, sabe? A malícia ela não é maldade, ela é diferente. Ela requer uma agressão e uma sutiliza também, você entender a hora que você pode ser malicioso, você saber como você vai ser malicioso, como você vai desviar e atingir os lugares comuns, tudo isso tem a ver com malícia. E eu acho que essas são sempre nossas grandes e principais intenções: malícia e ambição. Pra mim esses dois elementos não são apenas de criatividade e invenção, mas também de uma paixão e amor pela reação, uma amor pelos sentimentos e percepções que são capazes de serem produzidos dentro do cinema, e na verdade dentro de qualquer tipo de expressão artística.
A minha última pergunta é sobre como vocês se sentem passando o filme em um festival, e como vocês se observam dentro de uma tradição de um certo cinema experimental independente, vocês se sentem parte de alguma tradição moderna de cinema experimental brasileiro?
BRUNO: Olha, falando não só de cinema experimental, mas do cinema brasileiro em geral hoje eu não me sinto parte de nada. Óbvio que tem uma porrada de cineastas que eu gosto e admiro muito, e que sou amigo também, mas não acho que tem alguma unidade nisso. E passar filme em festival, por mais legal que seja o festival em si, sempre é uma merda porque é sempre frustrante, porque a gente sempre espera que o filme receba uma reação extrema, independente se for negativa ou positiva...
JOÃO: E no final a gente recebe algo morno, né
BRUNO: Sim, a gente recebe o morno. Mas acho que a gente está em um período meio conturbado nesses últimos três anos, na questão de festival de cinema e obviamente de produção cinematográfica. A gente tá fraco por motivos óbvios. Então eu consigo ver que os festivais estão se recuperando agora, né? Acho que a Mostra Filme Livre não acontecia presencialmente desde 2019.
JOÃO: Não dá mais para encontrar... a gente não mora mais no século XX, então esses ideais de movimento, de coesão, não existem mais hoje em dia. A gente vive agora em um individualismo radical, né? E fica cada um por si, e nenhum por todos, então é meio que uma chinfra, né? É uma aliança pessoal entre pessoas que você confia e que confiam no trabalho de fazer o filme seu, e eventualmente o filme pode ser exibido, pode não ser exibido, e essas coisas são também variantes sociais. Então é sempre uma questão de testar os limites dos padrões de sociabilidade do meio cultural e dos tipos de formas de curadoria que existem hoje, que são insuficientes e rasas. Então o importante sempre é ficar se encaixando pelas beiradas, e de maneira às vezes mas profundamente intuitiva do que estratégica.
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