terça-feira, 19 de setembro de 2023

Cobertura da 20.º Edição da Mostra Filme Livre: Entrevista com Gregorio Gananian, diretor de Nenhuma Fantasia (No Fool) e G.M- 8 Cantos.

   

 


 



Entrevista realizada no Estação Net Botafogo, no dia 15 de Setembro de 2023.

Há quanto tempo você conhece o Negro Leo? Como surgiu a colaboração e a ideia para este filme? 

GREGORIO: Eu e o Leo a gente se conhece desde mais ou menos 2012, 2013, quando ele fez o primeiro show dele em São Paulo eu fui o responsável por fazer o cenário, então tem uns 10 anos que nos conhecemos. E no período da pandemia ele foi convidado para participar do Festival Novas Frequências (festival de música experimental localizado no Rio de Janeiro), e nesse convite cada artista que participasse também teria que desenvolver um trabalho visual, e aí o Léo no ato de receber esse convite ligou para mim e me convidou para participar, a gente sentou e começou a pensar, desenvolver coisas, e no final desse processo a gente gravou o curta inteiro dentro da minha casa, durante um dia. 

Eu queria perguntar sobre dois elementos muito importantes no filme: o elemento da tecnologia e a questão do humor. Porque há um diálogo aberto sobre a questão das redes sociais, a questão do Google, e também a questão da robotização, do uso de robôs (com a presença do vídeo da Boston Dynamics), e também o curta possuí um senso de humor muito único, como foi criar essa linguagem e essa combinação entre os dois elementos?

GREGORIO: Então, na nossa concepção de humor a gente chama ele de ''rumor,'' de ''rumorismo'' porque a nossa intenção era trabalhar com um tipo de cinema atrelado a uma questão de ritmo, de velocidade, que conversa um pouco com o cinema que era realizado nas décadas de 40, 50, e o próprio cinema brasileiro deste período, como o cinema do Rogério Sganzerla e do Andrea Tonacci. E a ideia do ''rumorismo'' é justamente essa questão desses sons, desses rumores, essas espécies de propagações sonoras que vagueiam em torno da gente e criam uma ressonância, esses tipos de sons, sua velocidade, assim como a velocidade deste tipo de cinema, serviu como índice que guiava o nosso caminho. E também foi muito importante pensar a questão da velocidade, a gente estava interessado em repensar essa ideia da fala padronizada utilizada no século XX, e também pegamos influência de outros lugares, na música, até mesmo de desenhos animados.

E sobre a questão robótica, aquele uso vídeo da Boston Dynamics (empresa norte-americana que produz robôs para testagem de uso policial e de defesa) surgiu na hora da filmagem mesmo, a gente estava gravando e de repente me veio a memória de um dos vídeos que assisti no Youtube, e eu achei aquilo incrível, porque eu me lembro que uma coisa que eu e o Leno pensamos é de que vai chegar um momento em que esses robôs vão entrar em uma guerra real né, com a humanidade, então a gente colocou ele no curta quase que para dizer que a gente tá do lado dos robôs! Que quando chegar a hora deles atacarem geral, não nos ataquem! Estamos juntos! Ou seja, a gente entende a dor deles, a gente entende a luta que está por vir.

É fascinante ver no filme como vocês exploram a questão da Mise En Abyme, com a presença de vários ''Negro Leos,'' primeiro ele conversando com si mesmo, e depois com a presença dois dois duplicada ao infinito na televisão, como surgiu essa ideia?

Foi a Ava Rocha que deu essa ideia! Foi a Ava que falou perguntou ao Leo, ''Porque vocês não fazem um filme de você dentro da televisão?'' Foi essa ideia, que é uma ideia muito interessante, de fazer um filme partindo do mínimo múltiplo comum, né? Com um personagem repetido infinitamente em um televisor, duplicado no espaço, então essa ideia original veio da Ava. 

Na sua introdução ao filme na Mostra Filme Livre, você falou que você e o Negro Leo queriam criar um filme de ''entretenimento,'' e acho que um dos aspectos marcantes da obra é a carga de sua intensidade, desse ritmo frenético que cria um senso de variação de plano para plano, e eu queria perguntar sobre essa ideia de entretenimento em si, como você vê esse conceito nesse curta e dentro do seu cinema?  

GREGORIO: Eu acho que essa questão do entretenimento... o Eisenstein ele falava do conceito do Cinema das Atrações, da atração que você encontra indo para um parque de diversões, indo em um teatro vaudeville, com os dançarinos, os malabaristas, enfim, eu acho que esse filme nosso é um pouco que um retorno a essa ideia de atrações, é uma ideia de relembrar o estilo desse tipo de cinema que conversa com o circo, com esse espaço público de atrações, essa ideia de entretenimento. E, ao mesmo tempo, o filme é muito único né? Porque no final das contas a narrativa dele acaba lembrando... você se lembra daquele filme Não Olhe Para Cima (Don´t Look Up, dirigido por Adam Mckay)?

Sim, o que saiu na Netflix em 2021, que era sobre o fim do mundo. 

GREGORIO: É, e aquele filme termina com o cara dono de uma empresa bilionária, uma espécie de um Elon Musk, que chega no planeta extraterreste sozinho, e nosso filme acabou tendo o mesmo final! Aqui o Elon Musk no final vai para a Lua ele fica triste que o planeta Terra tenha chegado ao fim. Então nosso filme é uma tentativa de fazer um cinema de gênero, porque a gente estava tentando trabalhar com o cinema de humor, aquela influência do cinema do Howard Hawks que ele fez na década de 30 40, o Levada da Breca (Bringing up Baby, 1938), O Jejum de Amor (His Girl Friday, 1939) a velocidade que a gente encontra nesse cinema é incrível, e é uma velocidade que o Rogério Sganzerla dialoga bastante, porque ele entendeu esse estilo e trouxe pra gente né? Ele sempre escrevia sobre o cinema americano do Hawks, do Samuel Fuller...

Sobre a questão do uso da tecnologia, dentro do diálogo do próprio filme tem a menção ao Google, e essa questão do uso moderno de robôs, e eu não acho que o filme traga tesa alguma, mais eu fico pensando se a visão dele é mais cética em relação a forma como essa tecnologia está sendo empregada tradicionalmente, você acha que o olhar do filme, sobre o presente e futuro dessa questão tecnológica, vai para o lado mais cético e negativo?    

GREGORIO: Então, eu acho que no filme acontece uma coisa um pouco negativa porque termina com o Elon Musk na lua triste que a Terra tenha acabado, então ele é um pouco catastrófico nesse sentido, mas de alguma forma há uma certa ironia nessa catástrofe, né? E as legendas em inglês são rodeadas de textos extraídos do Livro do Apocalipse, então tem esse peso, só que ele tem, na minha visão, essa representação de um final meio imbecil que termina a humanidade. E isso ressoa dentro do meu ponto de vista, o Leo talvez tenha uma outra visão sobre isso, eu falo por mim nesse ponto, não necessariamente o Leo pensa da mesma forma, acho que cada um imagina alguma coisa diferente.

E eu me lembro de um momento em que eu estava com o Sérgio Villafrança, um artista compositor e pianista que sou muito próximo e no qual trabalho junto, e nós fomos visitar a casa do Augusto do Campos, que é uma figura que historicamente sempre fez uma certa... não vou dizer uma apologia vazia, mas ele sempre defendeu o uso da tecnologia, e de que os poetas têm que se criar uma relação com os meios de comunicação existente, é basicamente o caminho do Marshall Mcluhan, da mídia e dos meios de comunicação representando uma extensão do homem.

E eu achei a nossa visita na casa dele muito interessante, ele está com 96 anos agora, e nesse encontro ele fez pela primeira vez uma crítica a tecnologia. Ele falou que achava que a tecnologia estava se movimentando rápido demais, de um jeito muito acelerado que faz com que todas as coisas ficam excessivamente efêmeras. Se você desenvolve uma linguagem por meio de uma mídia no dia seguinte ela já vai ser cortada para surgir um outro meio completamente diferente. E eu achei a observação dele muito interessante, porque eu já tive uma certa paixão pelas maneiras que a tecnologia podia ser empregada, e esse caminho do Augusto do Campos, do Marshall Mcluhan, da teoria da comunicação, havia me influenciado muito pessoalmente. 

Eu acho que a tecnologia vai ser sempre fazer parte da nossa vida, a gente escreve, fala, anda, e grava usando tecnologia, mas mesmo assim é sempre uma luta né? Assim, é sempre uma batalha diária, é uma disputa, uma disputa cuja tendência parece, historicamente, a perder né? Mas aí é parte de um processo de perde-ganha. Quer dizer... eu sou de uma geração que sonhou com a internet naquele momento luminoso no começo da década de 2000, que todo mundo baixava filmes, havia uma divulgação da cultura, uma ideia de um renascimento que a internet traria e trouxe para um lado, né? X

Hoje em dia há uma reclamação e uma crítica generalizada sobre as redes sociais, e, ao mesmo tempo eu também vejo muita gente boa nascendo justamente por causa das redes sociais, muita gente que não teria espaço, quer dizer as pessoas às vezes são muito saudosistas da época das gravadoras, e para mim eu acho isso um absurdo. Sabe quantos discos de artistas independentes eram lançados naquela época? Pouquíssimos! Quer dizer... quem tem saudade disso? Hoje em dia pelo menos o artista, nas redes socias, pode conseguir um público de 20, 100 ou até 1000 pessoas, né? Mas a tecnologia hoje já virou outra coisa, já não é mais uma escolha de funciona ou não funciona, É a tékhne, né? Eu acho que o conceito de  tecnoxamanismo um caminho bem interessante pra gente entender hoje nossa relação com a tecnologia. 

Eu queria perguntar também sobre o outro filme que você vai exibir na Mostra Filme Livre, sobre o Gilberto Mendes, chamado G.M- 8 Cantos. No qual você dirigiu e o Sérgio Villafranca foi responsável pela trilha sonora, e também queria que você falasse um pouco de sua parceria artística com o Sérgio. 

GREGORIO: Esse filme é muito bonito, ele é quase um álbum de memórias. Ele é um filme que me dá uma alegria no coração e ao mesmo tempo um sentimento de nostalgia, porque eu conheci o Sérgio quando eu fiz a concepção e direção de uma Opereta com o Gilberto Mendes, que era o grande compositor e maestro brasileiro, e ele faleceu aos 93 anos de idade em 2016. E eu travei pessoalmente uma amizade com ele, um relacionamento com o Gilberto que durou dos 89 até seus 93 anos de idade. E foi a partir desse espetáculo, dessa Opereta chamada ''Gilberto Mundos,'' que conheci o Sérgio pela primeira vez. 

E o Sérgio é um grande parceiro de vários filmes, a gente tem muita coisa em comum, desenvolve muitos projetos juntos. A gente tem uma parceria que é quase como uma companhia de criação artística, e foi durante esse mesmo período que ele conheceu o Negro Leo, que ele colaborou recentemente em um show em São Paulo, então as coisas tão todas conectadas. E durante a pandemia ia acontecer uma homenagem na cidade de Santos ao Gilberto Mendes, porque ele tinha falecido, e o curador dessa homenagem, o Márcio Barreto, ligou para mim perguntando se eu tinha alguma memória, algum fragmento filmado do Gilberto, porque eu visitava ele recorrentemente, acho que viajei umas 15 vezes para Santos visitar ele. E o Gilberto havia participado do meu longa-metragem Inaudito (2021), mas não tinha entrado a sequência dele no corte final.

Então o G.M.-8 Cantos é composto sobre esses fragmentos de memória afetiva. Quando o Marcos me ligou na época eu comecei a buscar as imagens que eu tinha filmado dos encontros com ele, e eram imagens simples, do celular, do dia a dia, e na maior parte delas o Gilberto ficava cantando, ele adorava cantar e eu estava sempre gravando ele cantando. Então os cantos do título são cantos do Gilberto Mendes, e são cantos de amizade, memórias de situações distintas, o filme é um álbum de memórias. 

Quando você for assistir você vai sentir isso, é um filme que eu considero como um filme ''menor.'' Menor no melhor sentido, naquele sentido que o Deleuze e o Guatarri falam de uma arte menor.  E é um filme em uma voltagem diferente que o Nenhuma Fantasia. Eu sou um cineasta que me interessa explorar as duas frequências do cinema: A da alta velocidade do Nenhuma Fantasia, e a desse cinema mais Tai Chi Chuan que o G.M-8 Cantos representa. E aí hoje a gente tá sentindo muito felicidade porque o Sérgio fez a trilha do filme e vai tocar depois do final da sessão, e poder vir aqui no Rio de Janeiro, após o período pandêmico, carrega muitos símbolos de memórias afetivas, poder voltar a essa rede encontros e ressonâncias. 

E o Sérgio é ele é uma espécie de discípulo (talvez não seja a melhor a palavra) do Koellreutter, que foi um grande compositor brasileiro, que deu aulas na Bahia para o Tom Zé, para o Caeteno Veloso, foi ele que formou a faculdade de música da Bahia. E o Gilberto Mendes havia feito uma composição chamada ''Meu Amigo Koellreutter'' e é essa a música que o Sérgio toca no filme, e vai ser essa a música que ele tocar na sala de cinema quando a sessão acabar. Então a gente está dentro de um clima de abraços, de um clima mais festivo, de celebrar a vida, né? Sempre com um pouco de amargura do coração por todos que faleceram. Em especial pelas pessoas que faziam parte da Mostra Filme Livre e que foram homenageadas na sessão de abertura. 

A última pergunta que quero fazer é sobre a Mostra Filme Livre, qual é o relacionamento que você tem com essa mostra? Como você vê a questão da importância dela dentro para o cinema independente brasileiro?

GREGORIO: Essa mostra para mim tem um lugar especial, ela tem mais de 20 anos e sempre representou um radar, um lugar que mostra um tipo de cinema que busca a verdade, com essa coisa do cinema amador, do cinema caseiro, e tem muita gente legal nessa mostra, né? Então eu tenho uma relação de felicidade por ela continuar viva, eu acho uma milagre uma mostra de cinema independente ter mais de 20 anos no Brasil. E o meu último longa-metragem participou da mostra, em 2019. E vamos lá, eu acho que essa mostra cumpre um milagre, e daqui a pouco ela vai entender o milagre que ela faz e vai fazer... sabe aquele percurso do santo que faz milagre para si próprio nascer? Eu acho que ela agora vai fazer esse milagre de se perpetuar, de ressoar, é uma mostra que vai ficar com o tempo vivo na mão. 



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