quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Cobertura da 20.º Edição da Mostra Filme Livre: Entrevista com Bruno Pires e João Pedro Faro, diretores de Infinito Ábaco.

 





Como surgiu Infinito Ábaco? Como foi a concepção da ideia do filme até seu momento de gravação?

BRUNO: Então, o filme ele se comunica bem com um curta-metragem que eu havia realizado há alguns anos, e que era um vídeo de cinco minutos meio em estilo Found footage, sobre alienígenas e teorias da conspiração, e era um curta-metragem que eu achei bem divertido de fazer. E aí eu decidi expandir um pouco dessa linha estilística no Infinito Ábaco, que não é um filme de Found footage, mas era uma primeira ideia inicial, e acabou que o filme se tornou um filme mais engraçado, um filme de personagem né? Ele se tornou um Mockumentary desse personagem, interpretado por mim mesmo, se gravando. 

JOÃO: É, eu acho que a concepção geral do filme veio de uma junção de interesses antigos e obsessões particulares nossas no momento que a gente estava desenvolvendo ele, a gente estava assistindo na época muitos filmes do Jean-Claude Rosseau e do Luc Moullet, e a ideia nossa era tentar fazer um longa de comédia que se estruturasse pela forma, e que fosse composto de uma carne de texto, de diálogo do personagem, bem extensa. 

BRUNO: Sim, porque os filmes que a gente tinha feito antes, o Sombra (2021) e o Extremo Ocidente (2022), quase não tinham diálogos, e quando tinham eram compostos de narrações. Então o Infinito Ábaco é o primeiro nosso que tem a presença de grandes monólogos. 

JOÃO: A ideia também era saltar de filmes que tinham quase que um ''palavreado,'' ou que tratavam muito da ideia da palavra gravado, para fazer um longa que fosse basicamente carregado por alguma espécie de verborragia. Uma comédia didática. E isso tem a ver também com a forma como ele foi feito, sendo um documentário de ficção cientifica. Então ele se propõe basicamente em experimentar gêneros e ideias até que se forme uma coisa concisa e própria, que não seja propriamente nenhuma de suas das referências originais. Basicamente esse foi o processo desse filme e da maioria dos filmes que fizemos até agora. 

BRUNO: Acho que qualquer filme que nós fizemos até agora foi isso, a gente junta vários temas, várias ideias, e o resultado final se torna algo completamente diferente do ponto de partida. E esse filme além de ficção científica e documentário também é uma comédia né? Na hora que eu sentei para escrever os monólogos eu fiquei percebendo que não só as coisas faziam muito sentido entre si, como também se tornou um texto muito engraçado, é sobre um personagem que tem pouca consciência da graça que ele tem. E eu acho que talvez seja um pouco difícil, assisti esse filme, porque você não sabe se leva a sério ou não o que ele tá falando. 

Essa questão do gênero é muito fascinante porque uma coisa que eu percebi nos filmes da produtora de vocês, a mbvideo, é que todos os seus longas lidam com algum tipo de gênero cinematográfico específico: você tem o gênero meio ''buddy film'' do Sombra (2021), o gênero de cinema de guerra em Extremo Ocidente (2022), e aqui além de ficção científica e o Mockumentary vocês têm a comédia. Então eu queria perguntar: É o gênero do filme que surge primeiro antes da ideia da narrativa em si? Como vocês veem essa questão do cinema de gênero?

BRUNO: Eu acho que a ideia do gênero nasce antes, mas ela não necessariamente vai se manter fixa até o final do desenvolvimento do filme.

JOÃO: O gênero são as convenções cinematográficas que fazem sentido de serem trabalhadas a partir de determinada ideia. Então eu acho que pra mim talvez ela venha depois, porque o que vem antes nunca é necessariamente uma pulsão de um longa, ou de um gênero especifico, são um conjunto de ideias e interesses próprios que a gente acaba percebendo elas dentro de uma teia de outras referências. E tudo isso vai levar você a convenções, a trabalhar com as convenções que existem. E isso não é um elemento necessariamente incontornável, mas é algo sempre bem vindo, principalmente nesses projetos em que a ideia principal é essa tentativa constante, que nunca é finalizada, de encontrar um balanço, uma mistura, ou uma ligação entre experimentos estéticos mais intensos e de narrativas mais reconhecíveis, com traços reconhecíveis de outros cinemas, produtos culturais, meios artísticos, e pensamentos mais ou menos eruditos, mais ou menos inteligentes.  

Então é sempre essa tentativa de homogeneizar as coisas, e o gênero é uma convenção, o gênero é quando você percebe algum elemento que une um determinado grupo de coisas. Então de certa forma quando a gente se interessa em fazer filmes que tenham algum tipo de elemento mais reconhecível é difícil fugir de gêneros, porque são eles que determinam as convenções. Então me interessa sempre isso, os gêneros e os arquétipos. No caso do Infinito Ábaco, ele não lida necessariamente muito com a questão do arquétipo, ou até da questão de gênero, mas ele lida com essa ideia de quebra de expectativas, especialmente dentro de uma comédia, de uma quebra do que você espera ou não espera que aconteça dentro de uma determinada sequência estrutural e lógica do filme, que vai se explicando enquanto ele acontece, então o que fica são essas percepções alteradas de convenções e arquétipos. 

Sobre essa questão da comédia, eu queria que vocês falassem sobre o humor do filme, porque outro elemento dos filmes da mbvideo é essa ideia de explorar algo extremo, até mesmo nessa questão de uma certa violência que gera uma certa estranheza, uma certa quebra de expectativa com o que você está assistindo. E também queria que vocês comentassem a questão da ironia, porque a ideia de ironia é vista ás vezes com maus olhos, vocês acham que todas as obras da mbvideo tem uma questão de humor envolvida?

BRUNO: Eu acho que existem certos tipos de violência que são aceitáveis, dependendo do ambiente que você se encontra, né? Então por exemplo a gente passou esse filme para festivais de cinema como o Festival Ecrã, o Festival de Tiradentes, que estão acostumados com esse tipo de filme mais experimental, mas de baixo orçamento, e que tem uma certa violência. Mas ao mesmo tempo, não é uma violência do tipo físico que eu estou me referindo, né? É mais sobre essas coisas que chocam, acho que o humor é um tipo de violência...

JOÃO: O humor sempre é cruel, né?

BRUNO: É, eu acho que certo tipo de violência nesses festivais é aceitada e até esperada, certos temas também são esperados. E acho que fazer um filme como... eu sei lá, acho que comédia é um gênero que é pouco lembrado, especialmente quando é feito dessa forma com pouco orçamento...

JOÃO: E é um dos gêneros mais difíceis de se fazer, né? Porque você tem que encontrar uma maneira de ser engraçado com consistência, e isso não é muito fácil não, não que a gente seja, mas a tentativa de criar algum elemento cômico é sempre presente, sempre constante, apesar da seriedade intensa que você encontra em todos os projetos. Apesar de sermos duas pessoas que se levam muito a sério. 

BRUNO: Fazer comédia é um ofício muito, muito sério. 

JOÃO: Muito! E é um compromisso.

BRUNO: É muito difícil de fazer comédia em geral, mas eu acho... eu não acho que o filme é irônico. Eu acho que ele tem um personagem que é bem ''real,'' mas real do que certas pessoas que assistam o filme possam acreditar. É claro que o filme vai ter piadas, né? Porque é um personagem vivendo dentro de uma ilusão...

JOÃO: Ele é socialmente deslocado.

BRUNO: É, socialmente deslocado. Mas eu acho que o filme deve ser levado a sério como uma comédia, eu não sei se isso é um paradoxo, a ideia de ter que levar uma comédia a sério, dependendo do lugar aonde esse filme vai passar eu acho que as pessoas podem achar isso ridículo, achar isso tosco. Porque ao mesmo tempo que tem referências ao Rosseau, ao Moullet... e o Luc Moullet em si já é um cineasta completamente de humor, né? Ele tem palhaçadas no cinema dele que são dignas do cinema dos Irmãos Farrelly assim, mas já é um cara mais ''canônico,'' enfim. 

Mas ao mesmo tempo em que o filme traz essas referências um pouco mais eruditas ou ''underground,'' ele tem também a liberdade de lidar com tópicos que são populares, seja da televisão ou da internet. Eu acho que até talvez o seu ponto de partida tenha sido vídeos do Youtube de terror, sabe, essas séries de terror que você encontra no Youtube, tipo o Marble Hornets, que hoje em dia todo mundo conhece mas era um seriado de terror que foi gravado lá nos anos de 2009 até 2012 pelo Youtube. Foi uma puta referência também pra gente e acho que deve ser levado a sério também. 

Eu queria perguntar sobre a trajetória de vocês, porque vocês nesse momento tem oficialmente quatro longas metragens (com um prestes a ser lançado no futuro e já gravado) e também perguntar ao João, sendo um dos idealizadores e diretores principais da mbvideo, se ele sente que houve uma linha evolutiva indo de projeto a projeto, e se seu processo de fazer cinema mudou radicalmente desde a compleição de Sombra (2021), como foi isso tudo para vocês

JOÃO: Eu acho que o importante de cada projeto é ir um pouco na contramão do anterior, e isso é um movimento natural, é um movimento comum que eu acho que acontece dentro de pessoas que produzem qualquer tipo de obra. Mas o que fica ao longo das nossas experiências é uma tentativa de criar novos obstáculos constantemente para nós, então ás vezes é difícil entender a evolução de um filme para o outro, porque os problemas que surgem acabam sendo novos, inéditos. Então a busca por um novo problema, um novo obstáculo, é sempre o motor principal. 

BRUNO: E esses projetos vão ficando cada vez mais ambiciosos, querendo ou não, a não ser quando acontecem tipos de movimentos mais radicais, como no caso do Infinito Ábaco, que é um filme mais ambicioso mais de menor orçamento, de menor proporção comparado entre o Extremo Ocidente e o Sombra

JOÃO: E ele foi feito durante meses. 

BRUNOÉ, foi filmado durante semanas mas foi desenvolvido durante meses. Então a gente vai ficando mais ambicioso, sonhando cada vez mais alto. Mas a questão do orçamento não melhora, ele continua sendo baixo, mas os sacrifícios continuam sendo maiores: mais atores, mais situações extremas...

JOÃO: Ambição e malícia. Os fatores que definem nosso filmes são ambição e malícia

BRUNO: E querendo ou não, nesse processo você acaba ganhando certa moral, você aprende a ficar meio marrento também, né?

JOÃO: Não que a gente receba qualquer moral, mas realmente o objetivo é sempre ser mais ambicioso e mais malicioso. E eu acho que a malícia em geral ela é uma questão afetiva também, sabe? A malícia ela não é maldade, ela é diferente. Ela requer uma agressão e uma sutiliza também, você entender a hora que você pode ser malicioso, você saber como você vai ser malicioso, como você vai desviar e atingir os lugares comuns, tudo isso tem a ver com malícia. E eu acho que essas são sempre nossas grandes e principais intenções: malícia e ambição. Pra mim esses dois elementos não são apenas de criatividade e invenção, mas também de uma paixão e amor pela reação, uma amor pelos sentimentos e percepções que são capazes de serem produzidos dentro do cinema, e na verdade dentro de qualquer tipo de expressão artística. 

A minha última pergunta é sobre como vocês se sentem passando o filme em um festival, e como vocês se observam dentro de uma tradição de um certo cinema experimental independente, vocês se sentem parte de alguma tradição moderna de cinema experimental brasileiro? 

BRUNOOlha, falando não só de cinema experimental, mas do cinema brasileiro em geral hoje eu não me sinto parte de nada. Óbvio que tem uma porrada de cineastas que eu gosto e admiro muito, e que sou amigo também, mas não acho que tem alguma unidade nisso. E passar filme em festival, por mais legal que seja o festival em si, sempre é uma merda porque é sempre frustrante, porque a gente sempre espera que o filme receba uma reação extrema, independente se for negativa ou positiva...

JOÃO: E no final a gente recebe algo morno, né?

BRUNO: Sim, a gente recebe o morno. Mas acho que a gente está em um período meio conturbado nesses últimos três anos, na questão de festival de cinema e obviamente de produção cinematográfica. A gente tá fraco por motivos óbvios. Então eu consigo ver que os festivais estão se recuperando agora, né? Acho que a Mostra Filme Livre não acontecia presencialmente desde 2019. E ela meio que foi um pega tudo, né? Está passando filmes de vários cineastas, vários lugares, então não há um recorte muito específico pra se inserir. Então não sei, eu acho que existe até uma certa cena de cinema experimental brasileiro sul-americano, só que não faço parte dela. E mesmo os melhores acho que também não fazem parte dela. 

JOÃONão dá mais para encontrar... a gente não mora mais no século XX, então esses ideais de movimento, de coesão, não existem mais hoje em dia. A gente vive agora em um individualismo radical, né? E fica cada um por si, e nenhum por todos, então é meio que uma chinfra, ? É uma aliança pessoal entre pessoas que você confia e que confiam no trabalho de fazer o filme seu, e eventualmente o filme pode ser exibido, pode não ser exibido, e essas coisas são também variantes sociais. Então é sempre uma questão de testar os limites dos padrões de sociabilidade do meio cultural e dos tipos de formas de curadoria que existem hoje, que são insuficientes e rasas. Então o importante sempre é ficar se encaixando pelas beiradas, e de maneira às vezes mas profundamente intuitiva do que estratégica.

 

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Cobertura da 20.º Edição da Mostra Filme Livre: Entrevista com Gregorio Gananian, diretor de Nenhuma Fantasia (No Fool) e G.M- 8 Cantos.

   

 


 



Entrevista realizada no Estação Net Botafogo, no dia 15 de Setembro de 2023.

Há quanto tempo você conhece o Negro Leo? Como surgiu a colaboração e a ideia para este filme? 

GREGORIO: Eu e o Leo a gente se conhece desde mais ou menos 2012, 2013, quando ele fez o primeiro show dele em São Paulo eu fui o responsável por fazer o cenário, então tem uns 10 anos que nos conhecemos. E no período da pandemia ele foi convidado para participar do Festival Novas Frequências (festival de música experimental localizado no Rio de Janeiro), e nesse convite cada artista que participasse também teria que desenvolver um trabalho visual, e aí o Léo no ato de receber esse convite ligou para mim e me convidou para participar, a gente sentou e começou a pensar, desenvolver coisas, e no final desse processo a gente gravou o curta inteiro dentro da minha casa, durante um dia. 

Eu queria perguntar sobre dois elementos muito importantes no filme: o elemento da tecnologia e a questão do humor. Porque há um diálogo aberto sobre a questão das redes sociais, a questão do Google, e também a questão da robotização, do uso de robôs (com a presença do vídeo da Boston Dynamics), e também o curta possuí um senso de humor muito único, como foi criar essa linguagem e essa combinação entre os dois elementos?

GREGORIO: Então, na nossa concepção de humor a gente chama ele de ''rumor,'' de ''rumorismo'' porque a nossa intenção era trabalhar com um tipo de cinema atrelado a uma questão de ritmo, de velocidade, que conversa um pouco com o cinema que era realizado nas décadas de 40, 50, e o próprio cinema brasileiro deste período, como o cinema do Rogério Sganzerla e do Andrea Tonacci. E a ideia do ''rumorismo'' é justamente essa questão desses sons, desses rumores, essas espécies de propagações sonoras que vagueiam em torno da gente e criam uma ressonância, esses tipos de sons, sua velocidade, assim como a velocidade deste tipo de cinema, serviu como índice que guiava o nosso caminho. E também foi muito importante pensar a questão da velocidade, a gente estava interessado em repensar essa ideia da fala padronizada utilizada no século XX, e também pegamos influência de outros lugares, na música, até mesmo de desenhos animados.

E sobre a questão robótica, aquele uso vídeo da Boston Dynamics (empresa norte-americana que produz robôs para testagem de uso policial e de defesa) surgiu na hora da filmagem mesmo, a gente estava gravando e de repente me veio a memória de um dos vídeos que assisti no Youtube, e eu achei aquilo incrível, porque eu me lembro que uma coisa que eu e o Leno pensamos é de que vai chegar um momento em que esses robôs vão entrar em uma guerra real né, com a humanidade, então a gente colocou ele no curta quase que para dizer que a gente tá do lado dos robôs! Que quando chegar a hora deles atacarem geral, não nos ataquem! Estamos juntos! Ou seja, a gente entende a dor deles, a gente entende a luta que está por vir.

É fascinante ver no filme como vocês exploram a questão da Mise En Abyme, com a presença de vários ''Negro Leos,'' primeiro ele conversando com si mesmo, e depois com a presença dois dois duplicada ao infinito na televisão, como surgiu essa ideia?

Foi a Ava Rocha que deu essa ideia! Foi a Ava que falou perguntou ao Leo, ''Porque vocês não fazem um filme de você dentro da televisão?'' Foi essa ideia, que é uma ideia muito interessante, de fazer um filme partindo do mínimo múltiplo comum, né? Com um personagem repetido infinitamente em um televisor, duplicado no espaço, então essa ideia original veio da Ava. 

Na sua introdução ao filme na Mostra Filme Livre, você falou que você e o Negro Leo queriam criar um filme de ''entretenimento,'' e acho que um dos aspectos marcantes da obra é a carga de sua intensidade, desse ritmo frenético que cria um senso de variação de plano para plano, e eu queria perguntar sobre essa ideia de entretenimento em si, como você vê esse conceito nesse curta e dentro do seu cinema?  

GREGORIO: Eu acho que essa questão do entretenimento... o Eisenstein ele falava do conceito do Cinema das Atrações, da atração que você encontra indo para um parque de diversões, indo em um teatro vaudeville, com os dançarinos, os malabaristas, enfim, eu acho que esse filme nosso é um pouco que um retorno a essa ideia de atrações, é uma ideia de relembrar o estilo desse tipo de cinema que conversa com o circo, com esse espaço público de atrações, essa ideia de entretenimento. E, ao mesmo tempo, o filme é muito único né? Porque no final das contas a narrativa dele acaba lembrando... você se lembra daquele filme Não Olhe Para Cima (Don´t Look Up, dirigido por Adam Mckay)?

Sim, o que saiu na Netflix em 2021, que era sobre o fim do mundo. 

GREGORIO: É, e aquele filme termina com o cara dono de uma empresa bilionária, uma espécie de um Elon Musk, que chega no planeta extraterreste sozinho, e nosso filme acabou tendo o mesmo final! Aqui o Elon Musk no final vai para a Lua ele fica triste que o planeta Terra tenha chegado ao fim. Então nosso filme é uma tentativa de fazer um cinema de gênero, porque a gente estava tentando trabalhar com o cinema de humor, aquela influência do cinema do Howard Hawks que ele fez na década de 30 40, o Levada da Breca (Bringing up Baby, 1938), O Jejum de Amor (His Girl Friday, 1939) a velocidade que a gente encontra nesse cinema é incrível, e é uma velocidade que o Rogério Sganzerla dialoga bastante, porque ele entendeu esse estilo e trouxe pra gente né? Ele sempre escrevia sobre o cinema americano do Hawks, do Samuel Fuller...

Sobre a questão do uso da tecnologia, dentro do diálogo do próprio filme tem a menção ao Google, e essa questão do uso moderno de robôs, e eu não acho que o filme traga tesa alguma, mais eu fico pensando se a visão dele é mais cética em relação a forma como essa tecnologia está sendo empregada tradicionalmente, você acha que o olhar do filme, sobre o presente e futuro dessa questão tecnológica, vai para o lado mais cético e negativo?    

GREGORIO: Então, eu acho que no filme acontece uma coisa um pouco negativa porque termina com o Elon Musk na lua triste que a Terra tenha acabado, então ele é um pouco catastrófico nesse sentido, mas de alguma forma há uma certa ironia nessa catástrofe, né? E as legendas em inglês são rodeadas de textos extraídos do Livro do Apocalipse, então tem esse peso, só que ele tem, na minha visão, essa representação de um final meio imbecil que termina a humanidade. E isso ressoa dentro do meu ponto de vista, o Leo talvez tenha uma outra visão sobre isso, eu falo por mim nesse ponto, não necessariamente o Leo pensa da mesma forma, acho que cada um imagina alguma coisa diferente.

E eu me lembro de um momento em que eu estava com o Sérgio Villafrança, um artista compositor e pianista que sou muito próximo e no qual trabalho junto, e nós fomos visitar a casa do Augusto do Campos, que é uma figura que historicamente sempre fez uma certa... não vou dizer uma apologia vazia, mas ele sempre defendeu o uso da tecnologia, e de que os poetas têm que se criar uma relação com os meios de comunicação existente, é basicamente o caminho do Marshall Mcluhan, da mídia e dos meios de comunicação representando uma extensão do homem.

E eu achei a nossa visita na casa dele muito interessante, ele está com 96 anos agora, e nesse encontro ele fez pela primeira vez uma crítica a tecnologia. Ele falou que achava que a tecnologia estava se movimentando rápido demais, de um jeito muito acelerado que faz com que todas as coisas ficam excessivamente efêmeras. Se você desenvolve uma linguagem por meio de uma mídia no dia seguinte ela já vai ser cortada para surgir um outro meio completamente diferente. E eu achei a observação dele muito interessante, porque eu já tive uma certa paixão pelas maneiras que a tecnologia podia ser empregada, e esse caminho do Augusto do Campos, do Marshall Mcluhan, da teoria da comunicação, havia me influenciado muito pessoalmente. 

Eu acho que a tecnologia vai ser sempre fazer parte da nossa vida, a gente escreve, fala, anda, e grava usando tecnologia, mas mesmo assim é sempre uma luta né? Assim, é sempre uma batalha diária, é uma disputa, uma disputa cuja tendência parece, historicamente, a perder né? Mas aí é parte de um processo de perde-ganha. Quer dizer... eu sou de uma geração que sonhou com a internet naquele momento luminoso no começo da década de 2000, que todo mundo baixava filmes, havia uma divulgação da cultura, uma ideia de um renascimento que a internet traria e trouxe para um lado, né? X

Hoje em dia há uma reclamação e uma crítica generalizada sobre as redes sociais, e, ao mesmo tempo eu também vejo muita gente boa nascendo justamente por causa das redes sociais, muita gente que não teria espaço, quer dizer as pessoas às vezes são muito saudosistas da época das gravadoras, e para mim eu acho isso um absurdo. Sabe quantos discos de artistas independentes eram lançados naquela época? Pouquíssimos! Quer dizer... quem tem saudade disso? Hoje em dia pelo menos o artista, nas redes socias, pode conseguir um público de 20, 100 ou até 1000 pessoas, né? Mas a tecnologia hoje já virou outra coisa, já não é mais uma escolha de funciona ou não funciona, É a tékhne, né? Eu acho que o conceito de  tecnoxamanismo um caminho bem interessante pra gente entender hoje nossa relação com a tecnologia. 

Eu queria perguntar também sobre o outro filme que você vai exibir na Mostra Filme Livre, sobre o Gilberto Mendes, chamado G.M- 8 Cantos. No qual você dirigiu e o Sérgio Villafranca foi responsável pela trilha sonora, e também queria que você falasse um pouco de sua parceria artística com o Sérgio. 

GREGORIO: Esse filme é muito bonito, ele é quase um álbum de memórias. Ele é um filme que me dá uma alegria no coração e ao mesmo tempo um sentimento de nostalgia, porque eu conheci o Sérgio quando eu fiz a concepção e direção de uma Opereta com o Gilberto Mendes, que era o grande compositor e maestro brasileiro, e ele faleceu aos 93 anos de idade em 2016. E eu travei pessoalmente uma amizade com ele, um relacionamento com o Gilberto que durou dos 89 até seus 93 anos de idade. E foi a partir desse espetáculo, dessa Opereta chamada ''Gilberto Mundos,'' que conheci o Sérgio pela primeira vez. 

E o Sérgio é um grande parceiro de vários filmes, a gente tem muita coisa em comum, desenvolve muitos projetos juntos. A gente tem uma parceria que é quase como uma companhia de criação artística, e foi durante esse mesmo período que ele conheceu o Negro Leo, que ele colaborou recentemente em um show em São Paulo, então as coisas tão todas conectadas. E durante a pandemia ia acontecer uma homenagem na cidade de Santos ao Gilberto Mendes, porque ele tinha falecido, e o curador dessa homenagem, o Márcio Barreto, ligou para mim perguntando se eu tinha alguma memória, algum fragmento filmado do Gilberto, porque eu visitava ele recorrentemente, acho que viajei umas 15 vezes para Santos visitar ele. E o Gilberto havia participado do meu longa-metragem Inaudito (2021), mas não tinha entrado a sequência dele no corte final.

Então o G.M.-8 Cantos é composto sobre esses fragmentos de memória afetiva. Quando o Marcos me ligou na época eu comecei a buscar as imagens que eu tinha filmado dos encontros com ele, e eram imagens simples, do celular, do dia a dia, e na maior parte delas o Gilberto ficava cantando, ele adorava cantar e eu estava sempre gravando ele cantando. Então os cantos do título são cantos do Gilberto Mendes, e são cantos de amizade, memórias de situações distintas, o filme é um álbum de memórias. 

Quando você for assistir você vai sentir isso, é um filme que eu considero como um filme ''menor.'' Menor no melhor sentido, naquele sentido que o Deleuze e o Guatarri falam de uma arte menor.  E é um filme em uma voltagem diferente que o Nenhuma Fantasia. Eu sou um cineasta que me interessa explorar as duas frequências do cinema: A da alta velocidade do Nenhuma Fantasia, e a desse cinema mais Tai Chi Chuan que o G.M-8 Cantos representa. E aí hoje a gente tá sentindo muito felicidade porque o Sérgio fez a trilha do filme e vai tocar depois do final da sessão, e poder vir aqui no Rio de Janeiro, após o período pandêmico, carrega muitos símbolos de memórias afetivas, poder voltar a essa rede encontros e ressonâncias. 

E o Sérgio é ele é uma espécie de discípulo (talvez não seja a melhor a palavra) do Koellreutter, que foi um grande compositor brasileiro, que deu aulas na Bahia para o Tom Zé, para o Caeteno Veloso, foi ele que formou a faculdade de música da Bahia. E o Gilberto Mendes havia feito uma composição chamada ''Meu Amigo Koellreutter'' e é essa a música que o Sérgio toca no filme, e vai ser essa a música que ele tocar na sala de cinema quando a sessão acabar. Então a gente está dentro de um clima de abraços, de um clima mais festivo, de celebrar a vida, né? Sempre com um pouco de amargura do coração por todos que faleceram. Em especial pelas pessoas que faziam parte da Mostra Filme Livre e que foram homenageadas na sessão de abertura. 

A última pergunta que quero fazer é sobre a Mostra Filme Livre, qual é o relacionamento que você tem com essa mostra? Como você vê a questão da importância dela dentro para o cinema independente brasileiro?

GREGORIO: Essa mostra para mim tem um lugar especial, ela tem mais de 20 anos e sempre representou um radar, um lugar que mostra um tipo de cinema que busca a verdade, com essa coisa do cinema amador, do cinema caseiro, e tem muita gente legal nessa mostra, né? Então eu tenho uma relação de felicidade por ela continuar viva, eu acho uma milagre uma mostra de cinema independente ter mais de 20 anos no Brasil. E o meu último longa-metragem participou da mostra, em 2019. E vamos lá, eu acho que essa mostra cumpre um milagre, e daqui a pouco ela vai entender o milagre que ela faz e vai fazer... sabe aquele percurso do santo que faz milagre para si próprio nascer? Eu acho que ela agora vai fazer esse milagre de se perpetuar, de ressoar, é uma mostra que vai ficar com o tempo vivo na mão.