domingo, 13 de agosto de 2023

O Fim e o Príncipio

 


Algumas anotações imediatas após a sessão de 35mm na Cinemateca do MAM, dia 12 de Agosto de 2023:

Se eu estou filmando o outro é porque eu não me conheço e eu preciso conhecer o outro para me ver. 
Cinema é a minha forma de viver porque é a forma que eu tenho de me relacionar com o outro. 
Tem outras formas mais sadias também, mas a minha é o cinema. - Eduardo Coutinho.

O cinema de Eduardo Coutinho tem como método principal a exploração de uma alteridade de vivência subjetiva. Diferente de outros cineastas documentais que mesclam um estilo autobiográfico e confessional em suas obras (podemos citar aqui o cinema de Petra Costa, por exemplo), o seu cinema, em especial suas obras feitas após o lançamento de Cabra Marcado Para Morrer (1984), se baseiam inteiramente no principio de que o entrevistador deve entrevistar um ser humano em que nada se parece com ele, seja em pela sua classe social, sua religião, sua etnia, ou ambiente geográfico habitado. 

Em Fim e o Príncipio (2006), Coutinho começa sua narração dizendo que o filme foi feito sem um roteiro, sem uma pesquisa prévia, e sem qualquer tipo de planejamento. Apenas com uma equipe de filmagem durante duas semanas de estadia na São João do Rio do Peixe, em Paraíba, para entrevista os moradores mais velhos da região. Os relatos gravados pela câmera de Coutinho são deslumbrantes pela falta de distância em que a câmera se coloca perante seus personagens, os seus close-ups transformam cada rosto, cada figura em uma paisagem de anos, décadas vividas e enraizadas na pele.

O método de investigação é menos para denunciar alguma coisa, seja a miséria, seja a pobreza, seja qualquer tipo de indignação social, mas mais como uma ferramenta de criação de uma linguagem fabular, a vida de cada entrevistado se converte em ficção, em narrativa. E o processo de contar a história de suas vidas é essencial a criação de um registro, não para transformar seus personagens em objetos de estudo (o que seria abominável, já que criaria um senso de hierarquia intelectual ou social no espectador que assiste) mas sim para dar a eles uma espécie de tela, uma maneira de inscreverem suas visões subjetivas sobre si mesmos, e sobre os seus valores, sem algum tipo de julgamento moral.

Essa ideia de inscrição pode ser vista na cena em que uma das moradoras escreve uma cartografia das cidades que ela e sua família viveram, criando uma espécie de arvore da vida genealógica que consegue estruturar todo um campo de relações e convivências. Relações são a chave dos personagens em seu trabalho, e não é a toa que vemos muitas avós, pais, maridos, esposas e filhos ao redor. 

A ideia de criar uma cartografia histórica que não é pautada pelo panfletismo, pela obra ''informativa'', mas sim apenas e exclusivamente pelo relato faz com que o espectador se coloque em uma zona dupla: Tudo que vemos são a forma como os personagens se enxergam, e a memoria, para qualquer ser humano, pode ser traiçoeira, e não corresponder exatamente a realidade. Mas o que a obra de Coutinho consegue concluir, de maneira magnífica, é que a verdade dos relatos e a potência de significado que eles carregam já é o suficiente, não é preciso nenhum dado de objetividade ou de informações paralelas para que o afeto de suas histórias tenham força. A fabula se torna em seu cinema uma forma de conhecer o outro. De se inscrever no mundo. O ser humano realmente se torna humano pela capacidade que tem de fabular sua trajetória no planeta. No cinema de Coutinho, o rosto humano se torna uma paisagem, um mapa para localizar linhas e traços habitadas durante décadas. O registro do tempo se inscreve no corpo, na forma da dicção de cada fala, e na maneira como cada um se apresenta.

A pergunta chave que move o cinema de Coutinho desde Cabra Marcado Para Morrer possuem uma simplicidade desarmadora: O que é viver? Como é viver em uma comunidade, em um país, em uma região? O que é criar uma fábula, uma narrativa oral que consegue ser mais verdadeira que qualquer objetividade ''realista'' em sicomo o ser humano se define, que personagem nós somos para nós mesmos

Um dos momentos mais comoventes de Fim e o Principio é quando um dos entrevistados, um homem que vive sozinho em uma casa do sertão, relata sua trajetória antiga como poeta, e recita um dos poemas que ele havia composto em sua juventude, e dentro desse poema podemos a forma como ele consegue dar vasão aos seus sentimentos sobre mulheres, sobre o coletivo feminino de sua vida (sua mãe, as mulheres que ele amou) de forma que ele cria um registro de autoexpressão, de autoafirmação, que faz com uma vida inteira possa se revela em alguns minutos diante nossos olhos. 

E essa é a beleza do cinema de Coutinho: Mostrar o ser humano como fabulador de sua vida, a criação oral de uma linha narrativa que abrange classes, geografias, casamentos, amores, dores, fracassos e sucessos, e que o individuo desenvolve um processo emancipador de se tornar dono de sua própria história. A linguagem como forma de libertação do humano para definir seu ser, seus afetos, e sua mapa de relações interpessoais.  


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