domingo, 6 de agosto de 2023

Festival Ecrã 2023- Algumas anotações.

 


O Festival Ecrã é um dos eventos mais importantes de exibição de cinema experimental no Brasil, eu tenho acompanhado sua trajetória desde 2018 e este ano, devido ao espaço curto de tempo de sua etapa presencial (apenas 4 dias, diferente dos 10 dias disponíveis em 2022 e 2019 pré-pandemia) não pude assistir muitas obras, mas escrevi algumas anotações breves sobre certas obras que assisti em sua 7 edição.

Pessoalmente, foi um processo um pouco mais ''fácil'' de acompanhar a edição deste ano pelo fato de não estarmos em um ano eleitoral, e termos conseguido a vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2022, isso trouxe um certo alívio em questão de imaginar um futuro para editais de cultura e para a sobrevivência (nos próximos anos, ao menos) de festivais brasileiros de cinema experimental, porém, eu escrevo isso ainda de forma melancólica por observar que o festival foi obrigado a reduzir seu número de dias habitual, mas isso felizmente não impactou a qualidade única e distinta que as obras escolhidas apresentam. 

Aqui abaixo, uma listagem de filmes da edição deste ano que me marcaram, estes não são todos os filmes que vi na edição deste ano, mas são o que no momento da escrita deste post mais estão presos em minha memoria



A ROSA AZUL DO ESQUECIMENTO | The Blue Rose of Forgetfulness | Lewis Klahr | Estados Unidos | 2022 | 64 min. 

Este foi o primeiro filme de Lewis Klahr que assisti na minha vida, o que me impressionou foi como a bricolagem de seu uso de comic-strips para compor um fluxo narrativo que existe não pela apresentação de uma linha clara, mas por processos gráficos de uma criação de analogia. O filme apresenta certos movimentos do cinema de gênero americano( romance, thriller, filme de super-herói) para poder compor uma poesia feita de destroços, de um processo de colagem de elementos que em teoria existem separados e dispersos de si, mas que pela combinação gráfica criam uma melodia romântica muito única e impactante, essa foi minha introdução a obra de Klahr e mal posso esperar para ter a chance de assistir seus outros filmes.


ESPAÇO LIMINAR | idem | Gabriel Papaléo | Brasil | 2023 | 75 min

Como um álbum visual de estética cyberpunk carioca, o primeiro longa metragem de Papaléo consegue criar um senso de ambiência melancólica com sua caleidoscópica fotográfica do uso de neon, e pela sua trama semi-Alain Resnais de um homem a procura de uma memória idealizada de sua amante. O filme tem mais sucesso quando ele se entrega em ser puramente um exercício formal de experimentação, quando se apresenta como um álbum visual atmosférico, do que quando quer explicar seu mundo em termos narrativos. Como uma experiência sensorial de fantologia prismática de um futuro (e passado) distópico, o filme representa uma das exibições mais energizantes e cativantes que tive no festival. 


A LONGA VIAGEM DO ÔNIBUS AMARELO | idem | Júlio Bressane, Rodrigo Lima | Brasil | 2023 | 432 min. 

A trajetória de Bressane e suas obsessões coladas dentro de uma cartografia audiovisual deslumbrante, uma jornada de 7 horas cujo acumulo é a experiência de uma vida vivida em sua integridade, uma poesia do barco humano em busca do desconhecido, ou como o próprio Bressane disse após a sessão, a busca pelo ''nada.'' Acho que não vou ter sentimentos tão tocantes quando percebi que, após mais de quase 8 horas de ficarmos sentados na Cinemateca de MAM, quase ninguém abandonou ou saiu mais cedo do desafio colossal que esse filme represente. Uma meditação do caráter coletivo transformador de estar em uma sala de cinema, de ter uma fé na imagem, nos caminhos inéditos e desconhecidos que esse ônibus amarelo pode nos levar. 



UMA NOITE PERIGOSA NA ILHA DE VULCANO | idem | Darks Miranda | Brasil | 2023 | 40 min.

Uma investigação arqueológica construída a partir de imagens de arquivo de cenas de paisagem de filmes de ficção-cientifica da década de 40-60, este média-metragem dirigida pela artista multidisciplinar Darks Miranda é uma continuação de suas preocupações temáticas encontradas em seu trabalho de escultura: a criação de um universo sempre a deriva, alienígena pela desolação completa da figura do homem, a brutalidade de seu inventário e o uso de uma sonoridade ominosa que ressalta a característica infernal de um estado liminar apocalíptico, do fim da humanidade e um retorno as primórdios da Terra. A natureza existe antes, e além, do humano, e o filme apresenta essa ideia em um nível sensorial cativante. 



VERMELHO BRUTO | Idem | Amanda Devulsky | Brasil | 2022 | 203 min. 

Uma cena chave de Vermelho Bruto se encontra na metade final do filme, estamos vendo uma gravação feita por uma das mães protagonistas, no momento em que o resultado das eleições de Outubro de 2018 surgem na televisão de sua casa, e ouvimos um dialogo entre ela e sua filha, explicando de maneira apaziguadora como serão os próximos anos sombrios no Brasil, tentando ajudar sua filha pequena a entender um contexto político abominável ao mesmo tempo que tenta manter sua cabeça erguida e dedicada a suas responsabilidades domésticas. Enquanto ouvimos este dialogo, o câmera se encontra em uma mesa da sala de estar (eu não lembro exatamente a qual objeto ela se foca, se é um vaso, um rádio, ou um prato de jantar, minha memória está um pouco falha mas consigo visualizar a cena), e nós, os espectadores, não vemos nem a figura da filha ou de sua mãe enquanto a cena se desenvolve. 

Esse momento do filme de Amanda é a exemplificação perfeita da abordagem formal que a cineasta usa para contar a história destas mulheres: a criação de novos caminhos de ver e ouvir. A radicalização do que é permitido ouvir ou escutar em certo momento. E a criação de uma linguagem que força o espectador a criar um próprio espaço mental para abrigar este fora de campo, uma leitura participativa que tira o estado de inércia e conforto, especialmente pela longa duração que abrange diversas personagens em diferentes contextos geográficos e sociais. 

Se trata, um pouco parecido com o filme de Bressane, da criação de uma cartografia que cria novos modelos de percepção de pensar a ideia de um filme home-movie, de pensar a não-divisão da política em contextos domésticos e pessoais, e a textura de suas imagens traz uma maneira inventiva de retratar o aglutinamento constante desses elementos na vida brasileira. Desse não-conciliamento com o facismo macro e micropolítico. 

É um dos melhores filmes do festival e uma descoberta extraordinária que tive esse ano, e uma vitória artística não só da cineasta mas também de Darks Miranda, coautora da montagem do filme. 



TESTEMUNHAS SILENCIOSAS | Mudos Testigos | Luis Ospina, Jerónimo Arteaga | Colômbia | 2023 | 78 min. 

O filme final do cineasta Luis Ospina é composto pela montagem de doze obras do cinema mudo colombiano para criar uma narrativa imaginária: um romance impossível entre um casal de classes sociais diferentes. Um melodrama clássico que entre em processo de combustão interna na seção final do filme. O que mais me impressionou foi como o filme utilizou uma estrutura linear e clássica em sua composição narrativa para poder, na sua seção final, entrar em um caminho disperso, fragmentado, inconclusivo, que pode refletir em si o caminho sociocultural aberto do próprio país. Meu conhecimento da história da Colômbia é limitado, e com isso eu não posso fornecer uma declaração se esta ruptura formal sinaliza um sentimento de catarse fílmica em relação a própria ruptura que o país sofreu, mas como um conto romântico que termina em uma abertura infinita de possibilidades estéticas e de reformulação de arquivos históricos, é uma obra que dificilmente conseguirei esquecer. 



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