sábado, 4 de fevereiro de 2023

Uma conversa entre Jonas Mekas e Stan Brakhage.

 



A seguinte conversa foi realizada no Anthology Film Archives, em Nova York, no dia 3 de Novembro de 2000. Ela foi gravada com a intenção de ser publicada na revista Vogue, mas apenas uma porção pequena dela foi publicada lá. Aqui é apresentado um extrato mais completo do diálogo feito entre duas das figuras mais consagradas do Cinema de Vanguarda norte-americano.

Jonas Mekas: Aqui está Stan Brakhage! Que é considerado não apenas por mim, mas pela maioria das pessoas que escrevem crítica de cinema séria, como sendo possivelmente o maior cineasta americano vivo, tanto na importância artística do conjunto de seu trabalho como também na maneira que você influenciou outros realizadores.

Stan Brakhage: E aqui está o que você significa para mim, Jonas: Além de ser um grande cineasta que se estabeleceu em um estilo no qual você é praticamente único, o de cinema diário, você também foi o único artista que conseguiu manter um formato fílmico jornalístico durante quase toda a sua vida adulta, um formato ao mesmo tempo extenso, verossímil, e também carregado de significado artístico. E além de seu trabalho como cineasta, você encontrou uma forma de patrocinar e preservar filmes que você ama, e criou cooperativas no qual eles podem ser distribuídos: o Anthology Film Archives, um lugar que continua exibindo filmes até hoje e é definitivamente o único local onde podem ser encontrados que fazem parte do “Cinema Poético.” Então, além dessas duas coisas mencionadas, você também tem uma vida rica como poeta. Eu não sei ler Lituano, então só consigo ler as traduções em Inglês do seu trabalho, no qual me comovem profundamente. Eu não consigo entender como você consegue fazer tudo isso ao mesmo tempo.

JM: Eu e você estamos trabalhando há mais de cinquenta anos. Você está fazendo filmes desde 1953. E eu, na primavera de 1953, tinha me mudado para o Lower East Side de Nova York e abri minha primeira mostra de cinema de vanguarda na Gallery East. Eu mostrava filmes de Kenneth Anger, Gregory Markopoulos, Maya Deren, e Sidney Peterson. E como você pode vê, eu não precisava ir muito longe de onde morava para poder mostrá-los.

SB: Bem, o homem que realmente consegue fazer algum trabalho é aquele que pode trabalhar em casa. Mas obviamente (e ironicamente também) você é um homem exilado, em exílio de seu lar [Jonas Mekas nasceu na Lituânia e emigrou aos Estados Unidos logo após a Segunda Guerra Mundial]

JM: Bem, a gente viveu em um século no qual metade dele o mundo estava em um estado tão caótico que era impossível eu permanecer no meu lar original. Então eu agora costumo dizer que cinema se tornou meu lar. Eu antigamente dizia que cultura era meu lar, mais a ideia do que é ou não é cultura ficou muito confusa. Agora ninguém sabe mais o que é cultura, então eu prefiro continuar com o cinema.

SB: Esse foi o grande problema que eu e você encontramos pela primeira vez, o que era considerado cultura e o que não era, e o que era considerado arte também. Eu fiquei aterrorizado naquele período dos anos 60 com o medo de que as questões sociais iriam se sobrepor sobre o avanço das possibilidades estéticas da arte, que a atenção a uma coisa iria tirar a atenção de outra, na minha visão. Olhando para trás, eu acho que você na maior parte tinha razão, que eu não precisava ter tanto medo pela arte da forma que eu tinha. Quero dizer, muitos filmes que foram lançados naquela época eram estúpidos do ponto de vista artístico, estético, e até mesmo na questão de técnica. Mas mesmo assim, eles eram parte importante daquele período.

JM: Eu me lembro de quando nós celebramos o aniversário de 30 anos do Anthology Film Archives, eu estava junto do Ken Kelman e do P. Adams Sitney e nós conversamos sobre a criação de um repertório contendo o que era considerado como filmes “essenciais” do cinema. E ele consistia de 330 títulos de filmes que foram muito cuidadosamente selecionados e no qual nós acreditávamos que representavam os perímetros da arte do cinema. E durante isso nós chegamos a conclusão que a gente não tinha cometido nenhum erro grave nas nossas escolhas. Eu acabei descobrindo que tudo que eu exibia em mostras, os filmes que eu promovia, acabaram entrando nesse repertório. Esses filmes são considerados agora como clássicos dos anos 60. Mas também havia no meio, claro, alguns filmes que não se tornaram clássicos. Obras importantes e inovadoras são sempre cercados por obras que são menos importantes, mas com o passar do tempo esses filmes desaparecem. De certa forma, é como se fosse a lei do Darwin aplicada a área artística. No qual não são os “maiores” filmes que sobrevivem, mas os filmes mais essenciais.

SB: Eu tinha medo que as obras inferiores iriam naufragar a empreitada inteira.

JM: Não, elas só evaporam. O seu trabalho, os filmes de Kenneth Anger, Maya Deren, e Michael Snow, só ficam mais e mais importantes com o tempo.

SB: Mas eu também me pergunto se isso não é devido especialmente pelo trabalho de preservação que você fez.

JM: O que surgiu durante a minha conversa com o P. Adams Sitney, é que eu percebi que o que falta muito hoje em dia são pessoas escrevendo de forma séria e apaixonado sobre cinema de vanguarda. Essa era, obviamente, a minha função principal enquanto trabalhava na minha coluna Movie Journal no Village Voice.


SB: Eu não conheço ninguém. Existe algum crítico de cinema norte-americano que escreve sobre o Cinema Poético?

JM: Há muitos jornais e revistas independentes aqui, mas nenhum deles fala sobre Cinema Poético, eles sempre falam mais sobre filmes de Hollywood.

SB: Isso também revela sobre o que é escrito hoje em dia sobre poesia, arquitetura, e algumas artes performáticas: não têm igualdade de cobertura entre as obras, então todas acabam dando atenção maior aos mesmos trabalhos em detrimento de outros.

JM: Quando você entra em uma loja de jornais, você vê umas vinte, trinta revistas de arte, mas dentro delas você encontra nada além de publicidade.

SB: Na minha defesa, e muitos riram de mim quando eu fazia isso, eu tentava nos anos 60 e 70 defender o uso da palavra “arte.” E eu acabei desistindo dessa palavra porque no final das contas todo mundo acabou usando ela e aplicando essa dominação pra qualquer tipo de coisa. Ela deixou de ser uma palavra importante.

JM: Eu li uma pesquisa conduzida pelo Peter Moore, ele tinha uma coluna na revista Popular Photography durante a metade dos anos 60, e nessa pesquisa ele perguntou a pessoas se elas se consideravam artistas. E mais de seis milhões de pessoas responderam que sim. Então, é claro que quando você tem mais de seis milhões de artistas em um só país, você pode desistir de continuar usando essa palavra.

SB: Eu me lembro de alguém me dizendo que em breve, metade dos Estados Unidos vai ensinar arte para a outra metade.

JM: Tem certas palavras que são usadas com tanta frequência que o impacto deles dilui muito, então é bem melhor esquecer delas um pouco até chegar a hora certa delas serem usadas.

SB: E têm outras palavras que sofreram muito com isso, palavras como “amor.” “Deus.” “mal.” Então eu diria que não foi apenas o cinema que sofreu com essas dificuldades, mas todas as artes em geral. Ou o que nós tradicionalmente chamamos de arte, elas sofreram com essa desagregação de terminologia, essa falta de uma analise séria. Aqui nós temos uma disciplina que é a mais antiga da humanidade, a pintura, e quando ela é ensinada em escolas públicas, e em faculdades também, ela é ensinada apenas como se fosse um playground para você pintar um quadro com o seu dedo, é ensinada como se fosse apenas uma forma de expressão pessoal e sem toda a carga histórica que os movimentos artísticos tiveram ao longo das décadas.

JM: Eu quero também ressaltar uma coisa aqui. Quando você começou a fazer filmes no início dos anos 50, e quando eu entrei no cinema nessa mesma época, houve muitos desenvolvimentos importantes nas artes- o Gestualismo( Action Paiting), o teatro improvisado de Strasberg, as perfomances de Allan Kaprow, a aparição de artes conceituais, o Fluxus, vídeo arte- e tudo isso acabou desembocando em uma coisa chamada “Arte de Instalação”, que agora se desenvolveu e cresceu ainda mais no presente. E agora essas instalações de hoje em dia têm devorado dentro delas vídeos, filmes, esculturas, pinturas, todos as artes. Eu agora consigo encontrar mais pessoas jovens que estão mais interessadas em retornar ao que é a base primária da arte. Porque em certo ponto você tem que voltar a essência principal, e se perguntar o que realmente é musica, pintura, cinema, poesia, etc.


SB: Mas se lembra de quando nós estávamos escolhendo o nome do Anthology Film Archives, e nós pensávamos que não deveria haver um “O” no início do nome, porque achávamos que haveria outras antologias de filmes que seriam feitas, e seriam diferentes e iriam contradizer a nossa lista de Cinema Essencial, e isso seria a base também de um possível dialogo por divergências.

JM: Sim, mas isso não aconteceu. Nós fomos os únicos que foram malucos o suficiente para criar ela. Foi a mesma coisa com os retratos que o Andy Warhol filmava. Eu acreditava na época e escrevia sobre no Village Voice, que chegaria um tempo em que todo mundo estariam fazendo filmes de retratos, porque era algo muito fácil de ser realizado. E mesmo assim ninguém imitou o Andy. Ninguém consegue imitar Warhol, ou Dreyer, ou você. Todas essas coisas acontecem apenas uma vez e não podem ser repetidas por alguém diferente, e isso tem um lado muito belo.

SB: Essa também é a grande verdade. Eu cheguei em uma idade na minha vida no qual eu apenas respondo na maioria das vezes “eu não sei.” É esse tipo de coisa que é considerada sabedoria hoje em dia. Mas há certas coisas que seu sei. Uma coisa que eu sei é que não existem duas pessoas no planeta Terra que são totalmente idênticas entre si: As células de todo mundo são únicas e diferentes, como flocos de neve.

JM: Mas o que é interessante é que, apesar do fato de que cada floco de neve ter diferentes formas, além de sua forma no ar há a água. O estado no qual todos se encontram, algum lugar no qual todos nós nos encontramos. Quando as pessoas dizem que sou um artista independente, eu normalmente respondo que não, eu dependo de muitas coisas para trabalhar, os meus amigos, o meu passado, o que estou lendo, todos os poetas.

SB: A Gertrude Stein disse que há artistas que são independentes dependentes, e há aqueles que são dependentes independentes.

JM: Agora, eu quero usar esse momento para falar com vocês, meus caros leitores. Ninguém vai conseguir fazer o que Stan Brakhage, ou Ken Jacobs, ou Kenneth Anger estão fazendo. Então é melhor que nós continuemos amando eles, ajudando eles, e tomando conta deles. Suas obras são como conquistas especiais do espírito humano, como se fossem fragmentos do paraíso na Terra.

SB: Eu acho que isso mostra o lado seu que não aguenta ver o que você ama, se importa, e respeita imensamente, sendo deixado de lado e mal tratado: Há um impulso muito forte dentro de você de dar voz a essas pessoas, de salvar e preservar suas obras.

JM: Eu acho que é um grande erro as pessoas pensarem que o trabalho que os cineastas da vanguarda fazem é algo muito distante dos interesses delas no dia-a-dia. A maior parte das pessoas acredita que as nossas vidas, ou a possível estranheza das nossas vidas, pode ser interessante, mas não o trabalho em si. Mas eu acredito que o trabalho é universal, porque a poesia é algo universal. Não há diferença alguma entre ler um volume completo da Sylvia Plath e assistir um filme feito pelo Stan Brakhage. Eu penso em por que que as ideias feitas pelo Cinema Poético são mais difíceis de serem apreciadas e entendidas do que em outras artes. Nas escolas, obras de Faulkner e Olson são estudadas durante as aulas. Em literatura, essa separação de o que é normal e o que é “de arte” não existe.

SB: Mas existe alguns professores que preferem dar aulas de livros que foram adaptados por Hollywood, porque ele sabe que serão populares. E que as aulas vão atrair mais alunos e vai garantir o emprego deles… O que quer que seja. Eu vou continuar trabalhando. Eu agora estou na maior parte das vezes pintando na película, e leva um tempo para fazer 24 quadros individualmente, mas esse é o melhor do que eu consigo pagar. Eu não tenho dinheiro o suficiente para fazer muitas fotografias.


JM: O meu próprio estilo de diário veio bastante do fato de que eu não tinha tempo ou dinheiro para me dedicar a um filme “convencional” com um roteiro pronto. Então em vez de fazer “filmes” eu apenas filmava a vida. Eu até brinco as vezes, que eu não sou realmente um “cineasta”; eu sou apenas um “filmador.” Eu filmo a vida real. Eu nunca sei o que vai acontecer depois. A forma de meus filmes emerge da acumulação do material que eu filmo em si. Eu vou caminhando pela minha vida com a minha câmera Bolex. E aqui eu tenho uma pergunta para você. Eu quero perguntar sobre o filme que você fez no Canada, o “The God of Day Looked Down Upon Him.” Você já tinha a forma desse filme em sua mente, ou ela apareceu durante o processo do desenvolvimento dele?

SB: Nesse filme, eu sabia desde o início que ele seria uma terceira parte de uma trilogia. O titulo dele vem do romance de Charles Dickens, “David Copperfield.” Eu fiz ele no primeiro verão que eu e minha esposa voltamos para o lugar na Ilha de Vancouver onde ela passou a infância. Na época eu ainda estava careca por causa da quimioterapia que eu andava fazendo; eu tinha chegado bem perto da morte. Então eu estava com vontade de ver aquele oceano e formar uma relação com a ideia de um fim, ou com a noite, com a escuridão. A minha mente estava cheia de coisas como as pinturas que o Rothko fez nos anos finais de sua vida, como a Capela Rothko em Houston, Texas. Aquela capela salvou a minha sanidade. E também eu pensava no trabalho do Georges Braque, o trabalho tardio do Braque, o período que ele pintava o marrom, com um arado de madeira. Eu me sentia naquela velha idade, eu acreditava que eu iria morrer, e ainda espero isso, que pode acontecer em qualquer momento.

JM: Eu queria saber, se você tinha alguma ideia, algum sentimento de como seria a forma do filme antes de você começar a gravar ele. Ao fazer um filme, a maior parte dos cineastas sabem o que eles querem visualizar, eles já começam mais ou menos com a forma. Mas eu nunca passei por isso, porque eu sou apenas um “filmador”, porque assim que é a vida real. Eu não sei o que vai acontecer a cada momento, mas o que acontecer eu quero gravar.

SB: Mas eu acho que você é um estilista também. No sentido em que você consegue organizar bem tudo isso. Eu chamei você de o “Samuel Pepys do cinema” porque você é um estilista que nem ele nesse sentido.

JM: Sim, mas o estilo e as técnicas que eu uso vêm desse conteúdo, desse procedimento meu. Eu estou lidando com a vida real de momento para momento, de maneira instantânea.

SB: Você em algum momento pensa em dinheiro?

JM: Eu nunca penso em dinheiro.

SB: Eu sabia que você ia falar isso.

JM: Tem um espaço perto do Anthology Film Archives aonde nós vamos construir uma biblioteca para a maior coleção que existe de material escrito sobre cinema independente/ de vanguarda, vai custar uns 3.5 milhões de dólares. Mas eu sei que essa biblioteca vai conseguir ser feita. Tudo que precisa é a gente acreditar nela, e trabalhar, trabalhar, trabalhar…

Tradução por Francisco Vidal.



Anotações breves de Knock At The Cabin(2023). de M Night Shyamalan.



O cinema de Shyamalan sempre teve como uma temática central a questão da fé, entre a luta de uma visão racional e ateística de eventos aparentemente extraordinários e uma resignação ao fracasso de tentar compreender racionalmente o mistério da vida, os seus personagens ao se depararem com algo absurdo, inacreditável, e fora do padrão sempre transitam entre esses dois registros de pensamento: A tentativa de racionalizar os círculos nas plantações como sendo uma pegadinha de jovens em Sinais (2002), a taxação inicial de esquizofrenia feita pelo médico infantil Malcolm Crowe a criança mediúnica vivida por Haley Joel Osment em O Sexto Sentido, e a declaração de uma personagem psicóloga ( vivida por Nikki Amuka Bird, também presente em Batem á Porta), após presenciar pessoas em uma praia envelhecendo um ano em uma hora em Tempo (2021) : "Nós devemos estar passando por uma espécie de psicose coletiva!"

A luta entre uma aceitação a algo que é impossível de ser explicado e a tentativa de encaixar o inédito em "caixas" conceituais reconhecíveis anima a tensão geral de Knock At The Cabin, que é um dos filmes mais frontais de Shyamalan nesse sentido ao colocar os personagens principais( o casal vivido por Jonathan Groff e Ben Aldridge) como quase representantes dos dois lados dessa moeda: Enquanto o último mantêm uma postura crítica e cética a tudo que os invasores dizem( argumentando que os vídeos apocalípticos são filmagens pré-gravadas, que eles são parte de um culto suicida estilo Heaven´s Gate), o outro começa a entrar em um processo de corrosão do que ele deveria identificar como a explicação mais lógica do evento, e gradualmente passa a acreditar na explicação mais fantástica. 

Com isso, Shyamalan continua a se afirmar como um dos poucos cineastas comerciais que lida com a questão da fé em algo transcendente a si mesmo, e o vilão dos seus filmes sempre é a tentativa de mediocrizar algo que por si só é extraordinário, o crítico de cinema em A Dama da Água (2006) vivido por Bob Balaban, e a psiquiatra interpretada pela Sarah Paulson em Vidro (2019) são as figuras mais malditas em seu cinema exatamente por sua descrença absoluta que a vida pode trazer algo novo, imprevisto, nunca visto ou pensado antes de sua aparição, e o seu cinema é luta constante em como poder representar esse milagre, seja de um menino que vê fantasmas ou de uma família que consegue averter o apocalipse. 

Vou rever o filme, há diversos elementos que quero refletir mais sobre( em especial como M Night é um dos poucos diretores de mise-en-scene em uma hollywood devastada pela amnesia generalizada de como compor uma imagem, uma encenação, um clima, uma atmosfera...) mas algo que me ressalta é como esse filme continua um fio que Shyamalan discute desde 1999: Em seu cinema, ter fé é ao mesmo tempo um ato de sobrevivência e resistência a padrões dominantes racionalizantes e mortificantes.

Uma Entrevista em Pijamas.

 

Entrevista realizada com Chantal Akerman por Nicole Brenez em Julho de 2011


Conhecer a Chantal Akerman é vivenciar alguém incomparável: Uma artista dotada de uma força incomum, capaz de produzir um filme mesmo dentro dos piores problemas de produção, como os que surgiram em seu trabalho mais recente A Loucura de Almayer; um mulher de uma imensa vulnerabilidade, na medida em que ela se oferece para outros, dependendo de que não representem nenhum tipo de poder, seja político, econômico ou simbólico; uma diretora capaz de conquistar gestos extraordinários, sejam eles pequenos ou grandes.


Qual outro cineasta, por exemplo, iria oferecer todos os seus recursos para ajudar um produtor falido, como Chantal fez para seu amigo Paulo Branco em 2008? Intuitivamente, esse comportamento nunca é relacionado a criação de uma doutrina rígida, mais a uma experiência sentimental – Chantal Akerman age em seu dia a dia incorporando um ensinamento fundamental de Emmanuel Levinas: Pensar dentro da figura do Outro.

Nós vamos ver como essa ética particular estrutura uma concepção de imagem.  Em um lado, nós encontramos Iconofobia, isto é, a rejeição de uma imagem idolatrada. E de outro lado, Figurabilidade: Um relacionamento analítico do mundo fundado sobre um entendimento aprofundado das interações complexas de projeções que compõe o intercâmbio humano- uma interação que o cinema pode usar como o seu próprio material.

No calor do verão de 2011, mesmo ocupada com o lançamento do seu novo filme, Chantal Akerman se ofereceu para realizar esta entrevista- no qual ela releu e a corrigiu investigando todas as palavras, para rejeitar, com a sua precisão característica, qualquer pretensão de autoridade final sobre qualquer assunto. Eu organizei todo o material como uma pequena enciclopédia, de forma alfabética e cronológica, enquanto entrelaçava comentários de filmes escolhidos por Chantal para a sua carta branca oferecida pela Viennale( O Festival Internacional de Cinema de Viena). O título dessa entrevista é uma homenagem a comédia musical Um Pijama para Dois(1957) de George Abbott e Stanley Donen( o Golden Eighties de sua época), no qual Jean Luc Godard definiu tão bem, como uma obra ‘desenfreada’ em sua alegria de liberdade, em seu ‘prazer e necessidade de dançar’.

                                                     Início

Nicole Brenez: Vamos começar: Estamos em julho de 2011, você acabou de terminar as gravações de A Loucura de Almayer(2011), e conseguiu fazer isso sobre um pano de fundo de crises econômicas violentas e revoluções políticas no país. Como você lida com isso?

Chantal Akerman: Eu nasci em 1950, em uma família bem pobre, mas nesse contexto de pós-guerra, as coisas estavam até melhorando, ao menos no Mundo Ocidental. Hoje, é difícil de imaginar o que vai acontecer depois que for reprimido tudo que permite com que as pessoas vivam de forma mais ou menos decente. Ou infelizmente, talvez isso não seja tão difícil de imaginar.

NB: Você acha que a próxima revolução pode vir da extrema-direita na Europa? Que a Primavera Árabe irá ser reprimida pelos fundamentalistas?

CA: Talvez. Tem dias que eu mesma penso nisso. Eu sempre acredito no pior. Infelizmente, a história tende a provar que tenho razão nisso. Em 1941, os Estados Unidos sabiam que a guerra tinha sido vencida, e eles começaram a organizar a fuga das mentes principais do Nazismo com o Vaticano.  Em 1972, eles indicaram um criminoso, um antigo oficial de tropas de assalto, para ser o Secretário das Nações Unidas (Kurt Waldheim, de 1972 á 1981) O poder não tem alma. Você não consegue ficar surpresa com nada.

Hoje, os lobistas neoliberais insistem que a gente deve cortar o orçamento para educação, saúde, programas de assistência social para pessoas pobres- basicamente tudo que faz o mundo ser um lugar habitável. Há dois anos atrás, durante a primeira crise: Eu estava em Miami, e em um bairro Haitiano eu vi todas essas casas multicoloridas sendo fechadas e bloqueadas de acesso. Eu queria pintar alguns lençóis com cores diferentes e escrever uma trilha sonora baseada no que aconteceu com as pessoas que viviam nessas casas, e fazer uma instalação visual.

NB: E porque você desistiu?

CA: Quando as coisas não acontecem imediatamente pra mim, eu perco minha vontade de fazer. E de qualquer forma, eu tinha que me preparar para Almayer. Mas eu me arrependo de não ter seguido adiante com esse projeto.

Amour fou

NB: ‘A Queda de um Europeu em Malaia’ Essa foi a ideia principal do Joseph Conrad quando ele começou a escrever o seu primeiro livro, A Loucura do Almayer(1895). Essa é uma anotação sua na intenção do filme antes dele ser gravado.

CA: Sim, foi a primeira anotação. Desde então eu escrevi muitas outras.

NB: Para mim, em última análise, eu vi o filme como centralizado em torno de sentimentos primitivos, um filme sobre o  l’amour fou, um retrato de um homem que está com um amor intenso e terrível por sua filha. De alguma forma isso seria um retrato idealizado de seu pai?

CA: Não, não, definitivamente não. Eu não acredito que a gente precise andar sobre minha autobiografia. Isso me aprisiona demais.

É mais sobre o problema de amor e de amar em geral: Você faz isso pela outra pessoa ou para você mesmo? Almayer é possuído pelo amor que ele pensa que tem por sua filha; ele tem uma vida calamitosa fora disso então ele sente que não tem nada além dela. Ele representa um olhar deprimido, ansioso, no qual a filha não quer compartilhar.

Almayer e a filha dele representam dois personagens e dois lados distintos meus: a filha que tem a coragem de sair de casa, da mesma forma que eu tive na adolescência; e o pai deprimido, que, como eu, é afogado em seu próprio sentimento de luto. Então, voltamos para a autobiografia. É melhor eu parar com isso. De qualquer forma, é assim que eu explico esse filme pra mim mesma, para esse momento, para falar de meu desejo de fazê-lo- mais tudo é mais complicado que isso. Ou mais simples talvez.

Quando eu li o livro de Conrad, teve uma cena que me impactou: o pai quer conversar com a filha, para que ela fique com ele, e retorne para ele. Isso me comoveu até o ponto em que eu fiquei em lágrimas. Eu não sei por que ou como, mais eu acreditei sinceramente nesse sentimento. Não é a temática colonial em si que me interessa. Na mesma noite que eu li o livro, eu assisti o Tabu(1931) de F.W. Murnau. E eu senti uma certa faísca entre essa cena do livro e Tabu. E foi a partir dessa faísca que o desejo de fazer esse filme veio até mim.

NB: E o que exatamente o Almayer deseja para a sua filha?

CA: Para a filha dele, eu não sei; mas ele precisa de um motivo para viver. Para existir. O que ele poderia dar a filha dele? Nada.

Quando ela sai com um rapaz que ela não ama de verdade, é porque qualquer coisa seria melhor do que continuar vivendo com o pai. E é a mãe dela que encoraja ela nisso, a mãe dela que é mais prática.  Talvez seja melhor poder conhecer alguém por um tempo para poder conseguir amar essa pessoa depois, como era o costume de casamentos arranjados. Passo a passo, o casal pode aprender ter um respeito entre si. Bem, as vezes. No fim das contas, eu não sei.

Mercado de Arte

NB: Você entrou no campo do cinema por recursos próprios, sem ter que entrar em uma escola, faculdade ou até mesmo em um grupo, e passo a passo você forjou o seu caminho pela sua força de vontade, sem ter que sacrificar nada.  Como você se inseriu na esfera das Artes Plásticas?

CA: Por chance mesmo. Eu nunca me vi como uma artista. A Kathy Halbreich, que estava trabalhando em um museu, me pediu para eu fazer alguma coisa. Eu me convenci a fazer então. Eu comecei assim. Aí eu gostei de fazer, então eu fiquei continuando.

Fazer ‘arte’ em si é algo incrível na maior parte das vezes. Mas o mercado de arte é uma outra coisa. Porque ele é na maioria das vezes ligado ao poder, ao falocêntrico- mas nem sempre.

No cinema, quando você vai fazer um filme, mesmo se você fizer apenas para umas quatro pessoas, qualquer um pode entrar na sala escura para assistir o que você fez; é democrático.  No mundo de arte, tem um elitismo que muitas vezes é soberano e está ligado diretamente com o capital. Felizmente, nem sempre é assim. No período do Renascimento, os Medici deixaram Michaelangelo fazer esculturas revolucionárias como ‘Escravos’. Claude Berri que, como o meu pai, foi um judeu humilde que veio de casacos de pele e couro, iria acordar e dizer que estava olhando para os seus próprio Yves Kleins. Isso pertencia a ele. O que ele estava realmente olhando, a pintura ou o seu valor? Ambos, sem dúvida; eu não sei. No fim das contas, é algo emocionante para mim.

Meu pai também começou a comprar pinturas apenas no fim de sua vida. Pinturas meio ruins, mais ele gostava delas. Eu acho isso muito comovente.

NB:  Hoje os especuladores não compram trabalhos que eles gostam de verdade; eles inscrevem os nomes em uma lista e esperam para comprar um pintura que eles não viram, mas que ouvem que foi feita por um artista célebre.

CA: Felizmente, nem todos são assim. Mais é verdade, por exemplo, que pinturas que são vendidas em leilões são vendidas por preços astronômicos.

Depois da revolução- se realmente pode ser chamada assim- de Duchamp, uma espécie de espírito perverso silenciosamente tomou conta de tudo que poderia ser considerado arte. Quando o Steve McQueen cospe no chão, ele pode falar que é arte. Eu sei, é uma provocação- mas não é só isso.

NB: Então como você consegue trabalhar no contexto do mercado de arte moderno?

CA: Aconteceu que, até agora, eu consegui trabalhar por intermediários que são pessoas no qual eu respeito. Não apenas em museus públicos, mais em mercados privados. Eu respeito a Suzanne Pagé, e até mesmo um diretor do Museu de Arte Moderna(MOMA), que aconselha o Bernard Arnault. As vezes tem alguns ‘patrões’ mesmo, como por exemplo a Sylvina Boissonas, herdeira de Schlumberger, que patrocina o grupo Zanzibar, e também, infelizmente, um grupo de ‘Psicanálise e Política’.  Ou os De Menils, que também são da família Schlumberger que, em vez de guardarem os seus trabalhos, criaram a DIA Beacon e transformaram uma fábrica perto de Nova York em um espaço de exibição.

Mais no final das contas, essa arte só serve na maior parte das vezes para os ricos- de novo, o falocêntrico. Ocasionalmente, há colecionadores que amam de verdade a arte que tem. De novo, nada é simples. Antes da guerra, os donos de galerias mantinham trabalhos de artistas- não por especulação, mas por um amor verdadeiro por eles e por suas obras. Mesmo quando é exibida, na maior parte em palácios grandes, a arte se transforma em uma demonstração de um Ego infinito. Mais, mesmo assim, por um lado é bom que ao menos ela é exibida e vista.

NB: O Jonas Mekas tinha uma frase sobre o filme Cleópatra(1963) de Mankiewicz que é muito boa: Porque mostrar todo esse luxo delirante na tela em vez de apenas comprar uma Pepita de Ouro e exibir como ela realmente é?

CA: Ah, eu não tinha ouvido essa. O Bezerro Dourado. A Idolatria. E antes desse Bezerro, havia os escravos, as pirâmides. Nós temos que reler o livro de Exodus. Ele permanece ainda muito verdadeiro.

Eu não concordo com um filme como O Pianista (2002) do Polanski: a arte não tem um propósito majestoso, ela não reconcilia as pessoas com elas mesmas.  E definitivamente não a arte Europeia. Eu as vezes tenho a impressão de que foi o Romantismo Alemão que levou à guerra. Mais talvez seja só impressão minha.

                                                      Livros


NB: Além de seus roteiros para Os Encontros de Anna( Albatros, 1978) ou Um Divã em Nova York(L´arche, 1992), você publicou dois livros seus: uma peça, Hall de nuit(, L´arche, 1992), e uma estória sua, Une familie á BruxellesA Family in Brussels, L´Arche, 1998)

CA: Por vários motivos, eu acredito mais em livros do que em imagens.  A imagem é um ídolo em um mundo idólatra. Em um livro, não existe Idolatria, mesmo se você acabar idealizando os personagens. Eu acredito no livro; quando você consegue se imergir completamente em um grande livro que você está lendo, é um evento extraordinário.

NB: Quais livros representaram esse tipo de evento para você?

CA: Isso acontecia mais vezes quando eu era jovem. Nesses últimos anos, um que foi um evento pra mim foi Vida e Destino de Vasily Grossman, publicado quinze anos após a sua morte. E Contos de Kolimá de Varlam Shalamov.

NB: Duas narrativas Russas que documentam a guerra e os campos.

CA: Sim. Sempre isso.

Existia heróis nesses campos. A minha mãe, ela tinha quinze anos de idade quando ela estava no campo, trabalhava de noite na fabricação de suplementos de batalha para o Krupp. Um soldado de Wehrmacht uma vez visitou os campos e exclamou: ‘Não é normal para crianças ficarem trabalhando de noite’, e acabou transferindo ela para o turno do dia- mas todo o resto, o aprisionamento, a exploração, a morte ao redor, tudo isso ele achou que era normal! Minha mãe e as tias dela era cuidadas por uma mulher mais velha que ficava guardando pra elas um pouco de pão, para manter elas vivas. Durante a marcha da morte, quando os Nazistas perceberam que eles estavam rodeados de Americanos e Russos, eles esvaziaram os campos e forçaram os prisioneiros a andar descalços, ou com um papel ao redor de seus pés, de um campo para outro. Minha mãe não percebeu isso, mais as tias seguraram ela quando ela desmaiou, e mastigaram sua comida para que ela conseguisse comer.

NB: ‘ O mundo já não existe, terei de vos carregar’ assim como escreveu Paul Celan.

CA: De repente, elas foram salvas por alguns soldados Franceses que estavam indo na direção oposta, quando eles ouviram um grupo de mulheres falando Francês; eles pararam para ver, colocaram elas em casacos e as guiaram para a ponte de Bremen na parte Americana de lá. Eles trouxeram elas a um hospital que as alimentou pedaço por pedaço, o que salvou as suas vidas. Muitas pessoas morreram porque voltaram a se alimentar de forma muito rápida.

Mouchette (1967)de Robert Bresson.


CA: O final daquele filme, com a Mouchette rolando até sua morte no rio, é magnífico.  Com tão pouco, Bresson faz com que a gente sinta tantas coisas sobre o mundo: Mouchette se enrola junto de todas que foram sacrificadas; não só que foram estupradas, mais com vidas destruídas.  Todas aquelas que foram enroladas na lama.

NB: Mouchette prefere se manter em solidariedade com o seu caçador-estuprador e morrer do que ter que permanecer com os velhos dirigentes do vilarejo. Ela está em solidariedade com a sua classe.

CA: Sim. Bem, eu não sei. Talvez. A única coisa que eu lembro é o final. Quando eu estava gravando Do Leste(1993) na Ucrânia, eu e minha equipe ficamos sem gasolina. Alguns camponeses levaram gasolina do carro deles para nós, mais aí não queriam que a gente fosse embora e nos prepararam um banquete. Mesmo muito pobres, eles juntaram tudo que eles tinham para nos fornecer um banquete digno de reis. Eles não conheciam Prokofiev ou Shostakovich, mas eles sabiam que quando alguém está com fome, tem que comer. O Stalin ‘esqueceu’ de se planejar com a sua aragem, e causou uma crise de fome na Ucrânia que levou a morte de mais de sete milhões de pessoas. Mesmo sendo que ele veio de lá, da Ucrânia. Nada é simples. Esses mesmos camponeses poderiam ter massacrado judeus durante a guerra. Esses ou outros camponeses.

NB: O que é tão assustador em Mouchette é esse desejo feroz de morrer, essa afirmação da morte. Mouchette realiza três tentativas até conseguir se afogar.

CA: Sim, na maior parte das vezes isso acontece quando alguém quer morrer: eles continuam tentando e aí finalmente conseguem. Também é um filme sobre a França, que pode ser um lugar belo mas também esconde um certo horror. Depois do final, a Mouchette irá ser enterrada, e a terra no chão está ligada a assassinatos. Por isso eu não confio na terra. O Blanchot escreveu um texto belíssimo sobre Judeus e Nomadismo em A Conversa Infinita. Ele afirma isso: ‘Sem terra, sem assassinatos‘: Ele explica que a terra necessariamente iguala à sangue e que o mundo nada mais é que um cemitério gigantesco, sangrento, enquanto o livro pode ser uma terra sem sangue. Viver com uma terra própria é se arriscar de se tornar um matadouro gigantesco. Ser um Nômade é algo belo e também heroico. Mais vale a pena ser heroico toda hora?

                                                     Desejo

CA: Eu estava vivendo em um quarto de empregada sem aquecedor. O inverno pós-1968 estava congelante. Eu vivia lá em 1986 ou 1988, na rua Bonaparte, e também não tinha água. Perto de mim vivia um casal idoso, um pintor e a sua esposa, em dois quartos de empregada no qual eles tinham passado todas as suas vidas. Eu tinha apenas um abajur pequeno comigo que eu colocava perto da minha barriga para me manter quente. Eu fui para a residência estudantil com o meu colchão de espuma que tinha uma espessura de três centímetros. Eu vivi lá e conheci muitas pessoas novas, e elas me deram boas vindas. As vezes eu colocava minha engrenagem no corredor. Quando eu permanecia lá, o gelo estava espesso sobre as janelas; Eu nunca vivi em luxúria, mas em Bruxelas ao menos o nosso lugar era quente. Meu pai deve ter assumido que tudo isso iria acontecer, mais ele deixou eu ir; ela sabia que eu poderia viver sozinha. Paris foi a cidade dos sonhos, a cidade dos escritores, e eu quis escrever em Paris dentro de um quarto de empregada. Não em Bruxelas. Minha prima estava em Pais, e ela me pagou um pouco para eu cuidar da sua filha bebê lá. Eu não pegava o Metrô; Eu andava. Mais eu ainda não conheço Paris. Tudo foi apagado.

NB: Você trata sobre essa temática da pobreza e da liberdade em muito de seus filmes. Almayer inclusive nos dá um exemplo, quando Nina foge do internato e vagueia pelas ruas, sem dinheiro.

CA: Sim, definitivamente. Você trabalha com tudo o que você tem.

Mais tarde, eu vivia na rua Croulebarbe, no mesmo prédio que François e Noëlle Châtelet. Com Alex, um jovem que estava estudando Chinês e Laozi, Eu ia para a comuna de Vincennes e escutava Deleuze e Lacan. O Lacan era uma figura muito sarcástica, especialmente com as garotas; ele respondia os seus questionamentos para zombar e ridicularizar elas. Ele já estava dentro do seu Nó borromeano, e ninguém entendia nada disso. Deleuze, Eu só vi ele uma única vez, Eu não me lembro muito bem de como foi mas eu me lembro da atmosfera: vivaz, apaixonada e divertida. Eu conheci o Alex quando eu tinha treze anos, pelo DROR, o movimento Zionista-Socialista judeu. Alex tinha uma pequena poupança para se sustentar, e ele veio viver comigo. Ele tinha uma chapa elétrica pequena, e eu comprava tudo que era mais barato, como cenouras e arroz. Havia chuveiros e alguns pisos aquecidos que ninguém gostava. Alex queria que eu fosse com ele como mochileira no Japão, mais eu deixei ele. Ele era bonito, apesar de sua acne. Ele cometeu suicídio, e eu aprendi isso enquanto eu estava na fila de espera para assistir um filme. Ele também queria ser uma figura como o Rimbaud. Ela conversava pouco sobre si mesmo.

NB: No seu quarto de empregada, sobre o que você escrevia?

CA: Eu escrevi Eu Tu Ele Ela, mas como um livro, não como um filme. Apenas anos depois (1974) que eu fiz o filme. Eu peguei carona para voltar a Bruxelas para ver essa garota, Claire, que está no filme, e tive outros tipos de aventuras com motoristas de caminhão que me levavam. Era bem perigoso. Mas foi assim que eu vivia naquela época.  Eu também ajudava o meu primo Jonathan em escrever uma peça sobre Van Gogh, e eu tinha lido as cartas que Vincent escreveu para o seu irmão Theo. Aí então, eu tive uma crise mental. Eu cortei o meu cabelo curtinho, eu voltei lá; o meu pai ficou chocado, era obviamente um ato de automutilação.

Dirigindo o Ator

NB: Você contava e relembrava desses episódios de sua vida para os seus atores? para que eles entendessem os desafios do que eles interpretavam?

CA: Não. Eu não conto nada disso para eles. E quando eu faço um filme, Eu não penso nisso também. E o filme não é ligado a isso. Agora eu estou falando, eu estou me deixando ir para onde meu pensamento levar. Eu estou conversando porque eu imagino que é isso que você quer ouvir. Mais um filme é outra coisa. Eu não digo muito para os atores. Eu só tento fazer a escolha certa para o momento. Só isso mesmo.

Para Almayer, nós não ensaiamos, Eu não dei instruções; Eu só forneci um espaço para eles e eles seguiram adiante. Quando eles movem o corpo, nós seguimos eles, é como um documentário. Eles estavam livres para fazer o que desejavam, ou quase isso.

Rémon Fremont é um excelente cinegrafista documental; eu estava com ele para filmar Sud(1999), Do Leste(1993), De L´autre Côte(2003), e também um filme narrativo, Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles(1994). No final da filmagem, ele chorou em meus braços; ele me disse que ele nunca se sentiu tão feliz. Todo mundo estava bem feliz mesmo; todo mundo sentia que tinha um espaço próprio para respirar e, ao mesmo tempo, estavam em harmonia com todos ao redor. O Stanislas Merhar em particular, entendia o caminho que a gente estava traçando, mais eu raramente contava alguma coisa para ele: só algumas sugestões, as vezes de forma muito discreta. Enquanto ele se preparava, Stanislas iria falar sobre si mesmo, Eu acho, sobre o seu relacionamento com a vida- ou com a não-vida. Eu entendia o que ele estava fazendo e aceitei isso. Quando a gente se conheceu pela primeira vez, para La Captive(2000), ele não disse uma palavra para a equipe durante a gravação, exceto para mim e para Sylvie Testud. Todo mundo pensava que ele estava sendo arrogante mas não, ele só agia de forma um pouco ‘autista’. Ele ia para o set e apenas visualizava o seu trabalho. Nós temos um relacionamento muito forte, no qual nada pode desfazer; nós temos uma confiança completa entre nós. Esse tipo de respeito mútuo que a gente conquistou faz com que todas as nossas interações sejam pacíficas; nunca irá acontecer uma traição. Como acontece na maior parte das vezes no cinema.

NB: Até mesmo para a composição final do filme, que é tão complexa e virtuosa, você não planejou nada?

CA: Não, absolutamente não. Não havia a necessidade. Nós mantínhamos a cadeira do Stanislas movendo lentamente até o sol. Ele falava, ele ficava quieto, ele ouvia o som do rio, ele olhava para mim, Eu sinalizava para ele continuar; a cena durou uns dez minutos e eu selecionei um fragmento dela para o corte final.

Energia.

NB: Você demonstra um energia incomparável. Você conseguiu realizar Almayer dentro de um buraco negro de problemas de produção extraordinários, assim como outros de seus projetos.

CA: Minha energia vem quando eu me mantenho em forma. Eu passo metade do meu tempo na cama. Felizmente tenho uma janela agora na minha frente, então eu olho pro exterior. Antes, só tinha uma parede. Eu tive meu primeiro episódio de Mania quando eu tinha trinta e quatro anos. Minha vida mudou, alguma coisa tinha quebrado dentro de mim: algo daquela energia que me preenchia quando eu era jovem.

NB: Qual foi a natureza dessa mudança?

CA: Antes, eu sentia uma certa energia na minha vida, com momentos de depressão, claro- mas eu lia constantemente, escrevia, tinha curiosidade sobre tudo ao meu redor. Aí isso desapareceu … Esse colapso me nocauteou. Antes, eu andava descalça nas ruas, eu levava pessoas pobres pra minha casa, eu queria salvar o mundo. Imagine isso, eu telefonava a Anistia Internacional para convencer eles de cavarem um buraco no outro lado da Terra, para Sibéria, para que eles libertassem todas essas pessoas que estavam lá presas em campos! Eu queria que eles levassem dez mil Judeus Socialistas para Israel para mudar o governo e fazer as pazes … Mas eu não estava vivendo lá, e deve ser a decisão dos Israelitas de como isso deve ser feito. Não para nós que vivemos lá, atualmente, de forma segura.

Eu quero que os dias terminem mais cedo. Eu vou para cama ás cinco da tarde, ou até no máximo às oito da noite, com minhas pílulas de dormir. Sem reclamar. É assim que são as coisas. Eu lido com a minha doença. É uma doença como qualquer outra.

NB: Então o que te alimenta internamente? Como você você se descreveria?

CA: Como eu me descreveria? A minha primeira resposta seria, ‘Eu sou uma garota judia’. Mas se você me perguntar,’ O que significa ser judia?’. Eu não saberia o que dizer pra você. Eu tive que sair da minha comunidade judia para viver minha vida, e as vezes eu tenho saudades. Quando eu vejo judeus ortodoxos andando em minha vizinhança- saindo da sinagoga, com os seus chapéus escuros- Eu digo a eles, ‘Shabbat, Shalom’, e isso me faz me sentir bem.  É estúpido, eu sei, mas é assim que eu me sinto. Eles olham pra mim estranhados mas eles respondem, com voz baixa, ‘Shabbat, Shalom’. E nesse momento, eu sinto que pertenço- ou o oposto, que eu estou buscando pertencer a algo, mesmo se for por alguns segundos. É engraçado- além disso, eu amo Israel, mesmo se é uma forma própria de exílio. Um outro tipo. Eu me sinto bem lá, na maior parte das vezes, mesmo que eu não concorde com o seu governo. Mesmo eu sabendo que, para Israel para existir, ela derrama sangue, e conquista terras.

Quando você está com Judeus, mesmo se você odeia eles, há uma força presente, algo indizível aqui. (Exceto com Judeus com ódio de si mesmos). Não pode existir nenhum Antissemitismo.

Mesmo assim, foi um Judeu que denunciou a minha mãe. Ele era um porteiro em um clube noturno. Ele escondeu a minha família para poder conseguir dinheiro pra ela, e quando esse dinheiro acabou, ele denunciou ela. Ele foi derrubado pela Resistência; ele era um Untermensch. Nada é simples, e quando eu digo alguma coisa, eu quero dizer o contrário dela também.

NB: Você não hesita em usar um termo Nazista?

CA: Não. Não para esse homem. Talvez eu deva não mexer muito no vocabulário, mas ele deixa uma marca.

Meu pai nunca se vestiu com a estrela amarela. As irmãs dele esconderam ele em um convento, e as freiras tentaram converter ele. Os Judeus não tem o direito de fazer proselitismo. Os meus Avôs eram muito ingênuos; eles não conseguiam imaginar o que ia acontecer com eles, e eles acreditavam que estavam sendo levados para trabalho. As pinturas da minha avó foram roubadas.

Filmografia(Com Anotações)

Exploda Minha Cidade, 1968

O oposto de Jeanne Dielman. Charlie Chaplin, mulher.

A criança amada ou eu represento uma mulher casada, 1971

Um fracasso, perdido.

Hotel Monterey, 1972

Eu consigo respirar, Eu realmente sou uma cineasta.

La Chambre, 1972

Eu posso respirar e permanecer na cama. Ele foi feito no dia depois que eu terminei Monterey.

Le 15/8, 1973

Feito com Sami Szlingerbaum.

Hanging Out Yonkers, 1973

Perdido. Eu estava em centros de reabilitação para viciados em drogas fora de Nova York. Foi uma experiência muito bela. Eu enviei ele para a INSAS( Escola de Cinema de Bruxelas) e nunca encontrei ele de novo, mas não por falta de tentativa.

Eu Tu Ele Ela (1954)

Insensato.

Jeanne Dielman, 1975

Aqui as coisas ficam complicadas. Eu fiz tudo que eu queria fazer, então o que faço depois?

News From Home, 1976

Eu amo ele. Eu ainda não estou livre da minha mãe.

Os Encontros de Anna, 1978

Me diga que você me ama, Chantal. (Sempre a minha mãe.)

Dis-moi, 1980

Sobre avós. Naquele momento eu não tinha mais um; em narração em off, a minha mãe fala sobre a sua.

Toda Uma Noite, 1982

Les Années 80, 1983

Música.

L’Homme à la valise, 1983

Ausência.

Un jour Pina m’a demandé’, 1983

Terror sádico no meio de beleza.

Family Business, 1984

Charlie Chaplin (sou eu) e Aurore Clément.

J’ai faim, j’ai froid, 1984

Minha amiga e Eu. Uma pequena comédia musical sem canções.

Chantal Akerman (in Lettre d’un cineaste), 1984

Uma rosa é uma rosa é uma rosa, mas não é uma maçã.

Golden Eighties, 1986

Levou cinco anos para ser feito. Les Années 80 foi um modelo teste para este.

Letters Home, 1986

Sylvia Plath com Delphine Seyrig como a mãe, e Coralie Seyring como a filha. Suicídio.  Suicídio.

New York, New York bis, 1984

Perdido. Terceiro suícidio( Saute ma ville, Sylvia Plath, e agora eu).

Le Marteau, 1986

Quatro minutos de duração, um trabalho comissionado, o martelo voa. Um filme sobre um artista.

La paresse, 1986

Sonia Wieder-Artherton trabalha, e Eu fico na cama.

Rue Mallet-Stevens, 1986

Eu brinco de ser uma pilota.

Histoires d’Amérique, 1988

Os Judeus. (Em exílio, como sempre.)

Les Trois Dernières Sonates de Franz Schubert ,1989

Schubert: deslumbrante. Uma entrada na ’verdadeira’ cultura.

Trois Strophes sur le nom de Sacher, 1989

A estreia de Sonia.

Pour Febe Elisabeth Velasquez, El Salvador, 1991

Catherine Deneuve reconta a morte de Febe Elisabeth Velasquez. No final, ela abandona o plano, como se tudo tivesse sido forte demais.

Noite e Dia, 1991

Adolescentes.

Le Déménagement, 1992

Sami Frey. Triste e engraçado que nem Sami. Uma criança vinda da guerra.

Do Leste, 1993

Uma evocação da guerra. Implosão.

Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60s à Bruxelles, 1993

É um mundo dos homens, para homens.

Chantal Akerman par Chantal Akerman , 1997

Eu nasci em Bruxelas e essa é a verdade.

Um Divã em Nova York , 1996

A morte do meu pai.

Le jour où, 1997

Sul, 1999

James Byrd Jr. e a estrada. A estrada da morte. Sem nenhum vestígio- ou quase.

A Prisioneira, 2000

Sim.

Avec Sonia Wieder-Atherton, 2002

Sonia novamente.

De l’autre côté, 2002

…Fumaça e espelhos( os Estados Unidos)

Demain on déménage, 2004

Quase tive sucesso; Eu deveria ter interpretado o papel.

Lá-bas, 2006

Chantal em Israel. Complicado.

Tombée de nuit sur Shanghaï, 2007

Não está indo bem.

À l’Est avec Sonia Wieder-Atherton, 2009

Sonia de novo.

A Loucura de Almayer, 2011

Retorno à ficção.

Phillipe Garrel

NB: Você também aparece como atriz em Elle a passé tant d’heures sous les sunlights (1985) e Les Ministères de l’art (1988) de Philippe Garrel. Philippe é apenas dois anos mais velho que você, e vocês tem muito das mesmas fontes de referência; Rimbaud, Godard, e as mesmas tendências anarquistas e minimalistas …

CA: Eu não sei se nós temos as mesmas referências. Homens jovens pensam em Rimbaud, não em garotas. Anarquista? Eu não me vejo nessa palavra.  Eu estava lá, claro, e eu queria fazer filmes, em 1968. Sim, Godard, claro, minimalista. Eu me lembro de quando Philippe veio para casa para filmar ‘Elle a passée’… . Eu não tinha conseguido dormido na noite anterior. Ele tinha uma câmera antiga, quase quebrada. Ele tinha que segurar as lentes com a mão.

NB: É por isso que o filme é tão deslumbrante.

CA: Talvez.

                                       

                                                    Garota

NB: Você sempre fala sobre si mesma em termos de fille, garota, filha; um de seus autoretratos é intitulado Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles, e a protagonista feminina de A Loucura de Almayer é chamada de Nina, petite fille ou pequena garota. Fille significa juventude mas também principalmente filiação, uma herança. Para você, ser uma ‘fille’ significa não ser uma femme, uma mulher?

CA: Possivelmente. Provavelmente. Eu não sei. Eu nunca cresci. Eu sempre fui uma espécie de ‘criança crescida’. Almayer é um pai que tem um sonho para a sua filha e talvez para ele mesmo em relação a ela. Eu nunca segui o sonho de meu pai, de eu ter uma família. Eu permaneci uma garota, a filha da minha mãe. No fim das contas, Eu não sei.

Minha irmã, sim: ela começou um família em México. Ela tem duas crianças lindas e inteligentes. Minha sobrinha vai se casar em breve e essa trajetória vai continuar. As vezes eu me arrependo de não ter tido crianças. Talvez eu poderia ter me transformado de uma filha para uma mulher- mas se isso era possível para mim, Eu não sei. Provavelmente não.

NB: Então, você ficou determinada a permanecer uma garota.

CA: Eu não diria determinada. Mas é o que aconteceu. Eu era a primeira criança. Minha mãe sempre me criticava por não comer direito, ela era obcecada por comida. Quando eu tinha três meses de idade, Eu fui enviada para um conselho na Suíça, para comer mingau, toda hora o mesmo mingau, e eles batiam no meu queixo na pia se eu não comesse. As coisas passaram a melhorar quando a minha irmã nasceu. Quando eu era adolescente, eu comia de forma voraz- o que incomodava o meu pai, porque ele tinha que se manter magro para poder se casar. Ele era um pai Judeu, nove anos mais velho que a minha mãe, com três irmãs para tomar conta, e o meu avó que vivia com a gente. Para demonstrar para nós o que nós deveríamos fazer e não fazer, ele batia a palma da mão dele na mesa.

NB: Algo que você faz também.

CA: Sim, provavelmente. Nos anos 50, os pais tinham que reivindicar a sua autoridade; eles não podiam representar a figura de ‘amigos’ para os filhos.

NB: Eles eram os curadores e administradores da lei. Que valores que os seus pais queriam que você herdasse?

CA: Sim, dos Pais então. Você tinha que ser um bom ser humano. Você tinha que agir apropriadamente. Havia o que um deveria fazer e o que um não devia fazer, no final das contas era simples assim, mesmo se você não concordasse.

Mas, de outro lado, eles não me encorajavam para trabalhar de verdade. O meu pai não prestava atenção à minha escola, e por meses eu simplesmente não fui. A minha mãe assinava o meu cartão escolar de forma meio adormecida e na cama pra me salvar. Eles nunca me obrigavam a estudar direito, mesmo eu sendo boa na escola. Mas depois isso, o Ensino Médio foi um desastre. Porque eu era uma boa aluna, e eles me enviaram para um ensino médio muito privilegiado, rigoroso, feito para a elite intelectual da época, os tipos Maçons Belgas. Eu encontrei lá filhas de médicos, professores acadêmicos e líderes de indústrias. Lá eu era uma pária.

Meu pai se tornou um trabalhador quando ele tinha 12 anos de idade. Por parte do meu Pai, eu vim de uma família que caiu de cima para baixo na escada social. Minha família da Polónia era rica, e a minha avó estava acostumada a um estilo de vida grandioso. As três filhas dela aprenderam a tocar piano. Mais depois ela saíram da Polónia com nada e o meu Pai teve que se tornar um trabalhador, um fabricante de luvas, para poder alimentar a sua família.

Ele teria gostado mais de ter um filho no meu lugar, a partir disso o nome dele poderia continuar o seu legado. Um dia eu perguntei a ele: ‘Você viu o que eu fiz com o seu nome?’ Ele tinha lido alguns artigos sobre mim, mas não foi o suficiente; em qualquer caso eu não iria perpetuar o seu nome, a decepção dele foi bem predeterminada.

NB: Qual foi o nome de sua mãe?

CA: Leibel.

NB: Quase um anagrama de ‘Liebe’, Alemão para ‘Amor’. ( Em Iídiche, Leibel significa ‘Pequeno Leão’)

CA: Na família dela, a pessoa mais importante era a sua mãe. O pai dela era um cantor de uma sinagoga e o casamento deles era, obviamente, arranjado. Minha avó já era uma feminista; ela quis se tornar uma pintora e se casar sozinha por conta própria. Ela nasceu em 1905, e a mãe dela era muito religiosa. Ela não teve a vida que ela desejava- não mais que a minha mãe, que tinha confessado isso pra mim logo depois que meu pai faleceu. Com uma espécie de fúria. Dessa vez, era Eu que não conseguia entender. Seria eu um repositório de tudo isso? Sem dúvida- sim, e de outras coisas, também.

NB: Se você voltar agora para a sua vida, a sua própria liberdade, sua criatividade- Você não sente algum tipo de reparação?

CA: Não, definitivamente não. Que reparação? Antes, eu achava que estava revelando algo inédito conversando sobre isso, já que a minha mãe nunca teve essa oportunidade- mas agora eu sei que não era isso. Que eu nunca tive escolha. Não de verdade. Bem, eu não sei.

Eu tenho a falta de uma motivação contínua para eu ficar constantemente ligando os meus pensamentos e ideias à ações concretas … Mais tudo vem do jornal da minha avó. Quando eu fiquei doente pela primeira vez, a minha mãe fugiu, mais deixou pra mim um diário feito pela mãe dela, que veio de uma família muito ortodoxa. Em 1919, aos 15 anos de idade, ela escrevia: ‘É apenas em você, meu querido diário, que eu posso confiar os meus sentimentos e o meu luto, já que eu sou uma mulher!’ Ela pintava em segredo aos Sábados. Minha mãe ainda acredita que eu sou herdeira dela, que tudo vem dela. Minha avó criava vestidos e ela mesma desenhava os seus modelos. O sonho da minha mãe, antes da guerra, era aprender a desenhar para que ela conseguisse abrir um prédio de moda com a sua mãe. Mais esse sonho morreu nos campos junto com muitos outros, e nada mais foi possível.

Quando que decidi que eu iria fazer filmes, meu pai não queria isso pra mim. Ele ficava carregado de medo, que isso não iria dar certo. Mas a minha mãe disse ‘deixe ela fazer’.

O diário foi a única coisa que sobrava da mãe dela. Eu li ele umas dezenas vezes. A minha mãe também escreveu algumas linhas nele, eu também fiz isso, minha irmã pequena também. Uma tradição inteiramente feminina. Graças a isso, a minha mãe nunca acreditou que os homens eram seres superiores. E claro, ela servia ao meu pai, ela dava as melhores partes do jantar para ele …. mas não em sua mente. Meu pai admirava imensamente a mãe dele; ele nunca disse isso, mas eu conseguia notar. Eu só conhecia ela quando ela ficava louca. Ela conseguiu aguentar e esconder isso durante a guerra, mas soltou depois.

Uma noite, eu estava escrevendo Um Divã em Nova York(1996) para agradar o meu pai- achando que esse projeto iria me trazer dinheiro e que esse dinheiro iria satisfazer ele. Meu tio me disse o quanto devotado meu pai era para a mãe dele( no qual eu só conhecia quando ela ficava louca), mais do que ele era para o seu pai. Isso me deu um espaço para respirar, me fez me sentir aliviada de alguma forma. Mas isso significava que eu precisava salvar a mim mesma. Se eu não fizesse isso, como uma filha que sempre estava distante, o que eu me tornaria no futuro? Em uma clínica pelo resto da minha vida, como uma das minhas tias.

O Demônio das Onze Horas (1965)

NB: Você falou diversas vezes de como O Demônio das Onze Horas (1965) foi o filme que iniciou o seu amor por cinema.

CA: Sim, foi diferente de tudo que eu tinha assistido na minha vida antes. Eu não sabia que filmes poderiam ser feitos assim. Ele me deu uma força, um desejo alucinante de eu me tornar uma cineasta. Mais revendo ele agora, eu não gosto tanto quanto eu gostava antes. Bem, mais ou menos. Eu adoro a parte que se passa no Sul da França e aquela canção, ‘Ma ligne de chance’.

NB: E a explosão final?

CA: Ah sim, claro, a explosão eu definitivamente ainda gosto. ‘ Merda, merdmerda!’.

Um Corpo Que Cai (1958) de Alfred Hitchcock

CAUm Corpo que Cai (1958) é um filme visualmente sublime, ele é sobre fetichismo- sobre não ver realmente uma pessoa, transformar ela em uma extensão de você mesmo, reduzindo e negando a figura do Outro para alimentar as suas próprias ansiedades. Há muitas coisas que poderiam ser ditas sobre esse filme.

NB: Como Lacan disse, um homem nunca pode ver de verdade uma mulher.

CA: É uma frase bonita. Mas no final das contas, o que são homens e mulheres? Para a mulher, tudo tem que acontecer como uma fantasia, não é o sexo em si que faz ela ter orgasmo; ela pode ser mais polimorfa, como um bebê. Os ensinamentos patriarcais fazem ela pensar que isso tem que se passar nos orifícios, quando na verdade acontece em outro lugar, sem ter a necessidade dela fazer fetichismo com a vida sexual dela da mesma forma como os homens fazem.

Iconofobia

NB: Você acabou de voltar de Camboja, um país que passou por uma espécie de sobrevivência coletiva. Para você, como foi essa viagem em um lugar que é nomeado como sendo de Terceiro Mundo?

CA: Eu tive uma experiência ótima. Se você não conhece a história desse lugar, eu não imagino como você irá se sentir. Você pode intuir que lá tem uma geração inteira que está faltando, mas você não vê evidência disso nas pessoas, ou na verdade, elas não deixam você perceber isso. Todo mundo lá fica sorrindo, feliz, agradavelmente. Você acaba se perguntando como foi possível existir um genocídio nesse lugar.  Os Judeus sentem esse trauma. O que me surpreendeu foi a reação da menina que interpreta a versão jovem da Nina no filme. Ela tinha seis anos de idade, ela não queria sair de lá; quando eu propus á ela que ela voltasse para Nova York comigo, ela perguntou ao intérprete da conversa se eu era uma pessoa com um bom coração. Essa é a consequência do genocídio: a coisa mais importante se torna você ter bondade e gentileza. Natalia Shakhovskaïa, uma professora de violoncelo de lá, dizia isso também; ela viveu em um mundo feito de denúncias e traições constantes onde eles tinham que deixar a água correndo em casa para que os sons das pessoas conversando não serem ouvidos. Nesse mundo que exige gentileza e bondade, é essencial que você mostre que você possui um bom coração.

Mas Camboja não é o único país de Terceiro Mundo. Eu nunca fui para a África, apenas como uma cineasta eu não poderia; você tinha que ir como um médico. Um princípio do Judaísmo, é que imagens não podem ser exibidas; é uma religião que proíbe a representação de imagens.  Isso virou uma parte de mim: Eu nunca poderia mostrar pessoas morrendo. Eu vi esse tipo de imagens em alguns filmes, em filmes de um jovem cineasta Austríaco, de um bebê morto na frente da câmera, ou até mesmo em Fait divers(1983) de Depardon, onde ele filma um corpo morto logo após o seu suicídio, mesmo quando alguém pede para ele parar. Pra mim isso é abominável, é um crime.

NB: O Abbas Kiarostami também filmou uma criança morrendo em ABC Africa (2001) Mas, confrontado com esse tipo de catástrofe, o que ele poderia fazer?

CA: Poderia simplesmente apontar a câmera, mostrar lugares onde corpos estão enterrados.  É melhor trabalhar pela sugestão, isso atinge você e os espectadores de forma mais eficiente. No fim das contas, essa imagens literais e óbvias da morte não são eficientes, você tem que elaborar um outro caminho para confrontar esse problema diretamente, e fazer o espectador cara-a-cara com as imagens. É por isso que na maioria das vezes eu escolho filmar de forma frontal.

NB: Mas um rosto humano filmado frontalmente, como por exemplo, atrás uma parede, é como uma Bizantina, é um esquema formal que segue muito essa ideia de idolatria. É por causa do close-up, como o Jean Epstein disse, que o cinema conseguiu criar deuses.

CA: Mas o rosto é matéria, e ele se move, mesmo quando parece que está parado. E quando você evita truques como planos filmados em ângulos baixos, ou tomadas feitas em perspectiva subjetiva, você evita esse fetichismo. Quando você filma algo frontalmente, você coloca duas almas em um confronto direto e em igualdade entre si, você consegue criar um espaço real para o espectador poder se inserir. Então, não é uma coisa divina. Você fica contemplando algo que está fixo. Seus olhos não se fecham, eles não escapam do que está sendo mostrado.

NB: Então a sua concepção de uma imagem é uma batalha feita por dois lados: em um, você luta contra uma literalidade óbvia, e por outro lado, você luta contra a produção de imagens de idolatria.

CA: Sim, ser literal e óbvio fecha o espectador de se inserir no filme na maior parte das vezes. Ou talvez, depende muito do que você considera ser literal. Tem uma coisa feita para os Judeus que é como um conduta ética, que se trata sobre o relacionamento com o Outro, algo que o Emmanuel Levinas analisou de forma muito boa. Você está em contato direto com o Outro. É a partir desse contato cara-a-cara que o seu sentimento de responsabilidade começa. Levinas iria dizer algo como ‘agora que você entende isso, você não consegue matar’. Essa é a minha ideia de Ética. Por causa disso que eu sempre quero igualdade, entre a imagem e o espectador. Ou a transferência de um Inconsciente para o outro.

O Individuo

NB: O Cinema cria modelos de como se viver, de formas de ter residência no mundo. Em seu trabalho, nós podemos ver como você entrelaça constantemente entre dois tipos de indivíduos: O tipo soberano, que é responsável por suas ações, inventando a sua própria liberdade; e o individuo que é uma vitima para si mesmo(a), que cai em momentos de anonimato total.

CA: Sim, isso provavelmente é verdade. Você precisa de mais de dez homens para conseguir carregar um cadáver ou cantarolar o Kadish. Eles não conseguem fazer isso sozinho. Além disso, você tem que ter confiar em si mesmo, sem ter que exaltar exageradamente o individuo. É por isso que eu fiz análise por uns dez ou doze anos, indo e voltando. Eu dou uma respirada, e depois retorno. Eu sou consciente de que eu sou um individuo? Eu sei que eu sou Eu, mesmo quando eu não sei direito o que exatamente significa ser você mesma. A minha analista é como se fosse uma amiga minha; Eu fico repetindo as mesmas coisas toda hora pra ela, estórias e situações tiradas da Bíblia- Em particular do Julgamento de Salomão, no qual a mãe bondosa é revelada. E também dos quarenta anos que os Judeus permaneceram no deserto para perder todos os restos de traços de escravidão: Uma chance que os negros e as vítimas de campos de concentração não tiveram. Essa ideia é incrível: Ter um tempo só para remover as marcas do passado. As manchas da escravidão. Para os campos de concentração, eles dizem que isso levaria mais de três gerações. A minha sobrinha mais nova tem 27 anos e tem repulsa disso, ela faz parte da terceira geração. E a minha mãe, ela está esperando se tornar uma bisavó; ela está esperando pela quarta geração.

Instalação

NB: Desde 1995 e de  D’Est: au bord de la fiction (From the East: Bordering on Fiction), você fez instalações visuais e sonoras ao redor do mundo, como por exemplo Woman Sitting after Killing em 2001, Une voix dans le desert (A Voice in the Desert) em 2003, e Women from Antwerp em novembro de 2008. Na maioria das vezes, mas nem sempre, o material dessas instalações acaba ressurgindo em seus filmes. Como você navega entre eles?

CA: Uma obra de instalação é como o cinema sem os incômodos habituais- isso é, sem as partes humilhantes do processo de produção. Ela é livre de todo o peso e fardo do cinema. Eu consigo trabalhar sozinha nelas, em casa, sem ter que esperar pelo dinheiro. É um trabalho artesanal- praticamente à mão- o que eu adoro; não tem nada parecido com isso.

NB: Como você se ‘instala’ propriamente nesse material que você reúne?

CA: O processo disso é muito mais próximo de documentário do que ficção. Para um documentário, eu me transformo em uma esponja vazia absorvente de tudo ao redor; Se você já começa tendo uma ideia preconcebida, você vai obter ela- mas você não vai visualizar algo inédito e diferente. Quando em me tranco com o meu material para uma instalação, é como se eu estivesse filmando um documentário: Eu não sei o que vai acontecer, eu esculpo o meu material, e ele se organiza sozinho. E aí depois, como em um piscar de olhos, de repente está tudo aqui, é algo auto evidente. Para fazer ficção, tem necessariamente que ter uma estrutura com um início e um fim; eu posso alterar os elementos ao redor dela, mas eu não posso mudar a forma como eles se encontram; eu tenho que seguir o fio intercalado entre eles. Com instalações, eu não preciso seguir esse fio, e é um processo mágico: possibilidades múltiplas podem aparecer quando eu estou trabalhando no material, e o próprio material me conduz. Quando eu trabalho nele, ele se transforma em outra coisa, que surge de frente pra mim. Criação vem de transformação; o processo é libertador e emocionante, uma alegria pura.

NB: Quais são as diferenças entre as suas instalações? Como você vê a evolução delas desde 1995?

CA: As instalações principais minhas exploram formas alternativas de fazer ficção, diferente um formato tradicional, e com isso deixar um espaço mais aberto ao espectador. Os dispositivos técnicos mudaram, alguns se tornaram mais complexos. Nem todas as instalações estão conectadas aos meus filmes. Eu concebi a última, Maniac Summer(2009), de umas imagens originais, e de outras que quase eram aleatórias entre si. Eu queria que essa instalação fosse uma série de filmes abandonados quando eles ainda estavam em progresso, como se estivessem marcados por traços persistentes depois de uma dispersão violenta. Os fantasmas de Hiroshima forneceram a estrutura base do projeto. Vai ser melhor se eu ler o texto que foi escrito para acompanhar ela:

Essencialmente: Passando de um filme abandonado a outro, em progresso.

Sem um sujeito ou um objeto.

Sem um início ou fim.

Um filme que implode.

Entre Éden e catástrofe.

Em progresso. Em fragmentos. Fragmentos de catástrofes.

Um filme que se reproduz ao menos quatro vezes, talvez cinco, e está direcionado á catástrofe, como se superasse a velocidade da luz.

Como em Hiroshima. E como em Hiroshima, deixa vestígios, mais em progresso.

Um filme explode e flutua antes de morrer.

Perto dele, os fantasmas ainda estão dançando. Eles continuam com sua danse macabre

Um filme que se repete até que ele perde todas as suas cores, como sombras, fantasmas, restos.

Um filme que que foi uma composição que se separou.

De Preto á Branco de Branco á Preto.

Quase não identificável.

Na sua maioria com formas abstratas.

É assim que ele se tornar uma obra órfã.

Sem um autor, sem um sujeito, ou objeto.

Jeanne Dielman.

NB: O seu trabalho incluí um número considerável de autorretratos, e uma figura majestosa que inovou totalmente sua relação entre retrato e narrativa: a figura de uma mãe, Jeanne Dielman.

CA: Quando eu estava escrevendo, eu não entendia sobre o que Jeanne Dielman era. Eu só compreendi mesmo anos depois: era um filme sobre rituais Judaicos perdidos, e não só também sobre uma mulher obsessiva. Se ela é tão obsessiva, é para não deixar que uma porta se abre para entrar a ansiedade. E quando essa hora extra surge, toda a ansiedade dela se revela.

Eu entendi o filme depois da minha crise mental e análise. Eu queria que a minha mãe continuasse a praticar o Sabbath, que ela iluminasse as velas, isso veio da morte do pai de meu pai( o pai da minha mãe faleceu nos campos de concentração), que era o homem que me aceitou quando eu era menina. E quando ele morreu, eu ainda era pequena; eles me avisaram de noite quando eu estava na escola, e foi um choque total, e desde então eu quebrei o meu contato com o meu avô. Manter o Sabbath, significava para mim, reviver meus laços com esse homem que me aceitou exatamente como eu era quando eu era jovem. É um ritual muito belo, poderoso e até mesmo filosófico quando você medita sobre ele. A ideia deste ritual tem a ver com a passagem do animal para o humano. De acordo com regras de dieta, você tem que saber qual alimento tem leite, ou se é feito da mistura de outras alimentos , você tem que pensar nisso antes de se alimentar. Eu gosto dessa ideia.  Eu não guardo o Kosher, mas ao menos eu conheço o básico. Eu sei por exemplo porque você não pode comer mariscos, porque eles não se desenvolveram por completo.

NB: Isso me faz lembrar do Ken Jacobs, que me explicou pra mim uma vez que Tom, Tom, the Piper’s Son (1969) era um filme sobre um ritual Judaico de iniciação sexual.

CA: Muitos desse rituais sexuais são feitos para que os homens pensem um pouco antes de decidirem transar com uma mulher. No Judaísmo, um homem tem que satisfazer e agradar a sua esposa. Se não, isso já é motivo pra divórcio. Uma das minhas primas se divorciou por este motivo. Sexta à noite, o homem tem que satisfazer a mulher, assim ele vai poder conhecer ela, por cinco minutos ele tem que esquecer de si mesmo. Você não precisa ser um crente para acreditar nessa ideia. Infelizmente, os ultraortodoxos mudaram toda essa prática, e na maior parte para o pior.

NB: Como foi a sua experiência com o lançamento do filme?

CA: Em Cannes, depois da exibição dele, a primeira reação veio da Marguerite Duras. Logo depois ela desmereceu meu filme por completo. Ela disse que ela não iria ter filmado a cena de assassinato, que se o filme fosse dela teria feito uma espécie de ‘crônica’ sobre minha personagem. Eu acredito que ela não entendeu nada do filme. Ela disse, ‘essa mulher é maluca’, para que ela conseguisse identificar a personagem com o mundo dela. Eu fiquei furiosa. Pra mim, aquela mulher era como todas as outras que eu conhecia desde a infância. Elas eram malucas ou era a forma particular delas de lutar contra a própria loucura? Contra a ansiedade?

Marguerite tinha criado essa aura ao redor dela que ela iria ostentar ininterruptamente. Com a Agnès Varda, as vezes nós éramos competitivas entre si, mas ela era capaz de momentos de uma generosidade tremenda com as mulheres, enquanto a Marguerite só era capaz de estender essa generosidade com os homens; ela amava eles intensamente. Seria muito melhor se eu não tivesse conhecido ela. Nós ficamos três meses juntas, já que Jeanne Dielman e India Song foram lançados ao mesmo tempo e foram exibidos juntos em festivais. Marguerite na maior parte das vezes tendia para o lado do mal, primeiro durante a guerra, depois com o Partido Comunista … Mas há uma luz brilhante em alguns trabalhos dela; eu fui assistir a sua peça Eden Cinema(1997) e achei magnífica. E, mesmo depois de tudo aquilo, eu ainda gostava dela.

Eu acho que sempre é melhor você não conhecer os ‘criadores’ das obras. Toda hora que alguém me diz que gosta do meu trabalho, que gostaria de me conhecer, eu sempre digo: Talvez essa não seja uma boa ideia. Eu posso te decepcionar.

Emmanuel Levinas

NB: Você prestou mais atenção ao seminário de Levinas que você foi do que os de Deleuze ou Lacan.

CA: Sim, todos os Sábados eu ia para a ENIO(École Normale Israélite Orientale) na parada de metrô de Michel-Ange Auteuil. O Levinas fazia interpretações semanais de um verso que ele escolheu. Durante um ano inteiro ele iria interpretar a Bíblia, fazia um estudante traduzir um verso e, depois, sentando em sua cadeira, rodeado de livros, ele iria começar a sua exegese. RashiMaimonides, etc … O caminho que a gente aprendia era por questionamentos, por negações também, mas pela maior parte por questionamentos. Ir para uma Yeshiva (Escola Judaica) significava aprender a arte de questionar e de negar, e isso seguindo a Bíblia hebraica. O Talmude significava aprender a arte da discussão, a levar todas as coisas em consideração e questionar o significado delas, em conseguir desenvolver os seus próprios pensamentos.

NB: Para conquistar um sentimento dialético.

CA: Eu não sei se dialética é a palavra apropriada. E, de qualquer forma, é uma palavra que está associada demais ao Marxismo, mesmo se o Marx era um judeu e que, de alguma forma, ela estava inserido nesse tipo de prática de reflexão contínua e aprofundada.

NB: Você guardou alguma coisa dos seminários de Levinas?

CA: Não, eu não anotava nada e esqueci tudo depois que eu colapsei pela primeira vez. Depois disso, a minha memória ficou piorando Foi um desastre, e isso foi logo antes de Golden Eighties, que eu não fiz da maneira exata que eu queria.

NB: Eu me lembro de o quanto deslocado e explosivo esse filme parecia no cenário atual; ninguém estava preparado para ver um musical tão alegre e colorido. Esse tipo de alegria ia em direção oposta com o estilo dominante dos filmes ‘de arte’ dos anos 80.

CA: Eles ficavam esperando que eu repetisse Jeanne Dielman, mas eu queria me afastar de tudo aquilo- me afastar do nome do meu pai, em não me repetir. Eu fiz um número diverso de testes para ele, e Les Années 80 e os meus outros filmes são possivelmente até mais alegres que o resultado final, que sofreu por uma falta de recursos, e de outros motivos. Mas de qualquer forma, eu fiquei muito feliz em compor as canções dele.

Ménilmontant

NB: Por que você escolheu viver nesse bairro pobre de Paris?

CA: Eu não vejo ele como um bairro pobre- pelo contrário. Eu adorei viver nessa vizinhança híbrida; Eu vivi lá por mais de vinte anos, e antes disso na rua 107 de Ménilmontant. Como em toda vila, tinha um homem local que é louco, Gaspard, e os habitantes tomavam conta dele. O prédio no meio da rua tem pessoas de mais de oitenta e nove nacionalidades distintas. Eu vi crianças crescerem lá, e prédios entrarem em declínio; ninguém fazia nada. Um jovem caiu de uma janela uma vez, e eles tiveram que amputar a sua perna. Agora ele passa o resto da vida em um banco com um rádio enorme ouvindo música de rap. Quando eu ando perto dele, ele sempre me pergunta ‘Como estão as coisas Chantal?’ E eu respondo ‘Ah, estão bem‘. As vezes ele me chama de ‘Madame Chantal’.

Tabu de F.W Murnau (1931)

CA: Que simplicidade!, que economia formal!, que beleza na forma em como desenvolve os personagens jovens! Que horror diante dos perseguidores. Eu amo Sunrise(1927) também, mas em Tabu o final é bem mais sombrio, o casal não se reconcilia junto como em Sunrise. Não existe a figura de uma mulher boa e uma mulher ruim.

NB: Em A Loucura de Almayer, a cena com o casal dormindo no barco parece uma mistura entre Tabu The Night of the Hunter(1955) de Charles Laughton.

CA: É possível que sim. Eu não tenho nenhuma memória visual, apenas uma emocional; Eu não lembro de composições específicas, apenas o que elas significavam para mim.

Não.

NB: Na maior parte das vezes, quando alguém te faz uma pergunta, o seu primeiro impulso é responder ‘Não’. Como muitos outros escritores e artistas, você tem um instinto poderoso por contradição; você me faz lembrar a fala do Fausto de Goethe: ‘o instinto é sempre dizer não’.

CA: Ah, assim não! (rindo) Eu respondo isso quando eu sei que as respostas vão me aprisionar dentro de uma tabela, em um sistema de interpretações. E eu não quero isso, não quero ser simplificada assim. Mas logo após eu responder que não, eu me abro. Quando eu sei de um tópico intimamente, eu quero ter o meu tempo para explicar direito e me abrir nele. Eu não quero ficar presa em apenas um pensamento; eu quero ter pensamentos diferentes que se movem em perspectivas diversas. Então eu digo não quando eu me encontro em uma tabela que tem algum tipo de ‘ideologia’ por trás, por exemplo. Uma das pessoas que eu adoraria ter um diálogo sobre arte é a Lynne Cooke, uma curadora australiana. Ela faz questionamentos muito belos, de forma muito aberta e sem preconceitos. A primeira fez que eu me encontrei com ela, foi no dia seguinte da festa de encerramento das filmagens de D´Est; eu bebi tanto durante aquela noite que mal dormi. De repente o sino tocou, abri a porta e lá estava ela. Naquele momento eu nem me lembrava se eu tinha marcado um encontro com ela. Eu nem sabia quem ela era. Ela é pura de uma forma sem ser purista. E ela me faz pensar bastante, eu acho que ela é uma das maiores pensadoras de arte atualmente.

NB: Quais artistas contemporâneos te interessam?

CA: Richard Serra, sempre- pra mim ele é o melhor escultor, o melhor artista visual existente. Entrar em suas esculturas é esquecer do tempo e do espaço, é ser imersa em uma geometria física apaixonante. Em música, Kurtag, Scelsi e Monteverdi.  Em 1968, Momente de Stockhausen apareceu, e foi um choque completo, o primeiro impacto pra mim da música contemporânea. Tudo que ele faz em coro é belíssimo.

Em 1971-1973, quando eu estava em Nova York, eu fui jogada na descoberta da todas essas ideias estéticas emergentes. Eu adorava particularmente Charlemagne Palestine, o Phil Glass … mas o Phil Glass se transformou em um sistema simples, ele não me interessa agora. Os outros ainda continuam a se reinventar.

Romance doméstico

NB: Em Almayer, Marc Barbé e Stanislas Merhar representam dois lados da figura paterna, o primeiro é um demagogo maligno, o segundo é um amante passivo que se deixar levar pelos sonhos do primeiro; e ambos tomam conta dessa garota, Nina, de forma parecida. Mesmo assim, nós não sabemos por que é Lingard (Marc Barbé) que paga pela escola de Nina, e não o próprio Almayer, que representa de forma mais óbvia a figura paterna do longa.

CA: Eu não tinha refletido nisso. Isso vem do livro. Mas o Barbé oferece uma imagem mas paternal do que Stanislas. Ele é o mau pai- por isso que eu coloquei ele vestindo um smoking, assim a gente imagina que ele passa todas as suas noites em um cabaré. Ele não é um adolescente como o Stanislas; ele é um homem adulto, com todas essas besteiras associadas a ele, e esses sonhos estúpidos de dinheiro no qual ele contagia o Almayer.

NB: No livro de Conrad, o personagem do jovem, Daïn, tem um papel mais central na trama. No filme, vemos pouco dele.

CA: Eu filmei mais cenas dele, mas elas enchiam demais o filme. Na verdade, o Daïn pertence aos sonhos do homem chinês, porque ele sonha o que ele acredita ser melhor para a Nina. Eu queria uma cena agradável, doce, de quando Daïn e Nina se encontram pela primeira vez.

NB: No livro, Daïn lidera uma revolta anticolonial. No filme, você sugere explicitamente que ele poderia ser um insurgente que traficava armas ou drogas. As batalhas por liberação colonial que eram a base do livro de Conrad nem são mencionadas em seu filme. Isso não foi uma perda? Tirar isso do personagem?

CA: Eu teria que ir na história inteira do país. Seria um filme totalmente diferente.

NB: De onde vem a primeira cena do filme? Ela não está no livro. Você improvisou a criação dela nas filmagens?

CA: Não, ela foi planejada e escrita. Para a canção de Nina, eu hesitei antes de eu usar a versão latina de  ‘Ave Verum’ de Mozart, uma música Cristã em um clube noturno-  é engraçado ver ela assim porque está totalmente fora de lugar. É uma das poucas canções que eu aprendi na escola.

NB: Por que você decidiu colocar a voz da Madre Superiora, no contexto do filme, como uma fonte de assédio e de lei?

CA: Eu não decidi isso. No momento da gravação, alguém veio com essa ideia mim e eu segui intuitivamente. Quando é dito ‘ele é um de nós’, isso é uma frase do meu pai.

NB: Eu achei que era uma frase tirada do Monstros (1932) de Tod Browning, aquele refrão tenebroso, ‘ela é um de nós’.

CA: Não, é uma pergunta que meu pai sempre perguntava, ‘será ele um de nós?’

Pijama

NB: Quando você está filmando um filme, como você estabelece um estilo de vida comunitário?

CA: Cada filme é diferente, e cada um acha o seu lugar, em seus próprios termos. As regras se desenvolvem sozinhas, elas não são ditas e explicadas, mesmo que isso signifique que elas não são ‘regras’ em si. Eu não preciso estabelecer hierarquias. Em Jeanne Dielman, eu entrei em uma discussão com quem fazia a mixagem de som. Ela achava que a gente iria fazer o filme de forma coletiva- estávamos em uma época boa para o Maoismo. Ela julgava a Delphine, já que ela vinha da burguesia. Mas era a Delphine que estava se arriscando mais fazendo o filme, e não ela. As regras impedem a gente de viver. Eu saio com os meus pijamas, eu dispenso seguir a moda. Eu filmei todos os meus últimos filmes em pijamas. Hoje, nesse momento, estou em pijamas.

NB: Você tem isso em comum com o Michael Jackson, que apareceu em um julgamento apenas com pijamas e não com um terno profissional.

CA: Michael Jackson era o mestre de se transformar, nada conseguia impedir ele de recriar constantemente.

NB: No fim das contas, ninguém conseguia mas fixar uma identidade para o Michael Jackson. Ele foi um ser humano que se transformava constantemente.

CA: Sim.

NB: Eu me lembro de como ter o exemplo do Michael Jackson ajudava alguns dos meus alunos miscigenados.

 Mamma Roma (1962) de Pier Paolo Pasolini


CA
: Eu adoro esta mulher. A generosidade dela. Eu fico triste quando ela dá o dinheiro para o gigolô. O filho dela morre como se fosse um segundo Cristo- essa é parte mais fraca do filme, para mim, sem dúvida porque eu tenho uma certa repulsa pelo Catolicismo. Mesmo sendo ela injusta. 

Esse filme é ótimo, não pelo lado ficcional, mas pela dimensão documental dele, com a Anna Magnani como a personagem feminina.  Quando ela está conversando com as outras prostitutas durante aquele plano filmada dentro de um carro, e você consegue ver a alegria dela e das outras mulheres- só por esta cena, esse filme é ótimo.

Um Lugar na Terra.

CA: Eu observo o quanto determinada a minha mãe quer continuar vivendo, mesmo com tudo ao redor dela se desmoronando. Ela tem um espírito animado, o completo oposto do meu. Porque, durante 15 anos, antes de ser levada aos campos de concentração, ela conseguia ter fé e acreditar no mundo. Enquanto pra mim, eu nasci dentro do trauma. Minha irmã Sylviane e eu, nós tivemos que cuidar dela nesses últimos três meses mas, mesmo usando uma maca, quando a minha mãe vê um rapaz bonito ao seu lado, ela ainda consegue flertar como antes. Eu, eu nasci com ansiedades. Minha mãe nunca me permitiu que eu negociasse uma separação real dela- ou talvez sou eu que não conseguiu fazer isso, já que eu já tenho problemas em só existir. Quando eu era pequena, desde que eu soube o quanto ela sofreu, eu deixava ela ter o espaço dela. Eu nunca chorava, nunca dizia não. Pouco a pouco, eu percebi a dimensão, quando eu era jovem, de que eu não tinha um espaço meu pra ser uma mulher. Minha mãe ainda me chama de ‘mon amour’ toda hora, e isso me irrita. Em Judaísmo, você não é obrigado a amar os seus pais, apenas respeitar eles. As vezes eu não sinto amor ou respeito, e, as vezes, no dia seguinte, eu sinto muito de ambos. A mãe da minha mãe morreu nos campos de concentração, então ela não teve ninguém para cuidar dela quando ela envelheceu. A última vez que a minha mãe quebrou um osso do corpo, ela caiu no chão de noite, mas graças a adrenalina ela temporariamente não sentiu nada. No dia seguinte, eu tive que levar ela a um hospital; eu disse a ela ‘’Mamãe, você não tem mais 18 anos, quando você está dentro de um lugar, ligue as luzes´; ela tem 84 anos, mas ela ficou tão irritada que ela se recusou a comer por cinco dias. Não havia nada que eu conseguisse fazer, eu disse a mim mesma: ‘Ela está se permitindo morrer, é a escolha dela, como os cachorros velhos que preferem não se alimentar para poderem morrer mais rápido’. A minha irmã apareceu e, já que a minha mãe tem um relacionamento completamente diferente com ela, ela voltou a se alimentar de novo.

NB: Você acredita que a sua mãe negou o seu direito de existir?

CA: Ah, eu não sei, isso é complicado demais. As vezes, eu penso que sim. As vezes, eu torço pra que ela morra- apenas no sentido que ela teria que morrer dentro de mim. Não a Mulher, é claro. Apenas a Mãe. Mas, no final das contas, eu sei que isso não vai mudar nada.

Pobreza

NB: Nós podemos inferir que você nunca pede por nada há mais, que você é contente com o pouco que tem, chegando até a se privar de coisas- isso estrutura o seu relacionamento com o mundo, um estilo que é caracterizado principalmente pelo ascetismo.

CA: Eu entendia de cara que os meus pais não tinham nada, que eu não poderia ou deveria pedir por nada há mais. Quando eu tinha alguma coisa, eu tinha que jogar fora depois, dispersar aos ventos. Eu não tinha nenhuma grande necessidade ou cuidado extra; quando eu era pequena. eu sempre ficava na parte de fundo para que a minha mãe conseguisse ter a sua própria vida e um quarto para si mesma, já que ela sofreu muito nos campos. Bem, é isso que eu digo pra mim mesma agora. Em todos os casos, eu nunca mostrava sinais de raiva; acima de tudo, eu não queria fazer ela sofrer.

Eu usava as roupas da minha prima, o que não me incomodava. Meu pai me inscreveu em um colégio Judaico e, em 1956, já havia lá uma classe de pais que conquistaram novas fortunas. As crianças deles tinham suas roupas de Dujardin, como as de hoje tem suas de lojas famosas. Quando eu tinha 13 ou 14 anos, pela primeira vez, a minha mãe me deu diretamente dinheiro que as minhas tias tinham dado a ela de presente por causa do meu aniversário. Eu fui para o Dujardin para comprar uma camiseta polo, e imediatamente eu percebi que aquilo era uma decisão tola; foi a última fez que eu fiz algo assim. Todo mundo ia para a praia em Knokke-le-Zoute, no mesmo lugar. A praia era dividida pelos quebra ventos, e todo mundo ficava nesse mesmo local, ‘Viaene’. Todo mundo trocava de roupa dentro dessas cabines de madeira pequenas; sentavam em cadeiras de praia; todas as mães tinham essas roupas e óculos escuros bonitos. Mas a minha mãe ainda era a mais bela de todas. Todas as crianças tinha bicicletas. Meu pai alugava uma para mim por cinco francos pra corridas de meia hora. As crianças jogavam tênis, mas eu jogava Ping-Pong, porque era mais livre. O Sorvete da maioria das crianças tinha três bolas, o meu tinha uma. Mas eu podia perceber o quanto meu pai estava trabalhando, e eu não queria pedir nada pra ele, ou mencionar alguma coisa incômoda. Uma das minhas tias era até mais pobre, eu guardava sempre 25 centavos para ela. Eu não queria comer; a minha mãe ficava doida com isso. Quando a minha irmã nasceu, as coisas passaram a melhorar. Quando ela virou uma adolescente, ela imediatamente queria uma bicicleta e uma vitrola. Eu lembro que ela foi um dia para o loja de rádio para tentar comprar uma vitrola sozinha. Eu fiquei chocada.

NB: Você transformou esse asceticismo existencial em um estilo, essa rigidez sua em um minimalismo.

CA: Talvez. Eu fiz algo a partir disso. Mas sempre significava me manter secundária, nunca lutar o suficiente pelos meus filmes, nunca reivindicando algum espaço ‘social’ importante pra eles, comparado com outras diretoras. Como uma criança poderia dizer essas coisas para si mesma? O que é isso que alguém botou dentro de mim? , que eu internalizei tudo isso tão fortemente? Eu não consigo explicar. Quando eu era pequena e meus pais saiam de casa, eu nunca chorava. Quando a minha irmã nasceu, a minha mãe disse, ‘Olhea Chantal não está com inveja’. Então você internaliza isso, e fica com orgulho de não estar invejosa. Em todos os meus relacionamentos emocionais, eu não tenho inveja, então eu continuo provando essa declaração, que foi mais poderosa para mim do que qualquer ordem direta. A minha psicanalista me diz ‘Você acumulou muita fúria, isso pode explodir um dia’. Eu tenho medo de acabar matando alguém se por acaso isso explodir. Tudo está ligado à guerra e aos campos de concentração; quando eu era uma menina, eu tinha pesadelos recorrentes, dois que apareciam mais vezes. No primeiro, Hitler estava sentado em uma cadeira gigante em um campo de concentração, e os Judeus estavam tocando violinos com sorrisos cerrados dentro de um círculo, como algo saído de Pina Bausch, dentro de um círculo. No segundo sonho, não havia nada pra comer, então seres humanos estavam sendo devorados. Eles iam enforcar a gente, eu e minha mãe, com um gancho de açougueiro. Mas eu era pequena então eu consegui escapar. Na minha casa, quando eu acordava e via a minha mãe de novo, eu me sentia culpada de só ter salvo a mim mesma no sonho. De onde vem isso? Na minha casa, eu ouvia a palavra ‘Läger‘ (campo) muito em polonês, eu devo ter presumido o que aconteceu com a minha mãe nos campos. Mas ela nunca falava nada disso, ou quase nunca.

Eu tinha muito medo de voltar à dormir, eu pedia pra minha mãe para repetir ‘Bonne nuit, Chantal’ até que ela dizer em um tom correto. Eu não estou reclamando disso tudo; eu odeio pessoas que ficam reclamando. Só estou lhe dizendo.

NB: Enquanto você fazia essas obras tão despojadas, você encontrou alguns modelos de referência, em particular o Robert Bresson.

CA: Eu cheguei ao Bresson tarde, quando eu tinha por volta de 25 anos, depois da Nouvelle Vague. Bresson também é um grande materialista. A orelha do padre de Diário de um Pároco da Aldeia (1951):  nunca na minha vida eu vi uma orelha tão bela, eu olhava para ela fascinada. É por isso que esses termos todos de ‘Cineasta Católico’, ‘Cineasta Judeu’, ‘Cineasta Mulher’ ‘Cineasta Gay’- todas esses rótulos tem que ser jogados fora, não a partir deles que as coisas realmente acontecem.

Provocação

NB: Você diz que você permanece escondida nos fundos, mas o seu trabalho também tem um poder tremendo de criar polêmica. E você pode ser bem provocadora também, quando durante uma cerimônia no Festival de Veneza de 2008, você não hesitou de atacar a indústria cultural americana.

CA: Ah, eu nem me lembro disso. No meu trabalho, eu não estou a fim de criar polêmicas. Na vida, quando é o assunto de impressões minhas, eu tento não dizer uma palavra mais alta que a outra. É apenas no espectro mais amplo de assuntos mundiais que eu pode ser provocadora.

NB: Mesmo assim, o seu trabalho fez você se tornar uma figura histórica da liberdade. Você conquistou o seu lugar e virou um emblema de emancipação.

CA: Eu tinha 18 anos em 1968. E em Novembro desse ano, eu fiz Exploda Minha Cidade(1968). Para as mulheres, 1968 foi um cilada; sexualmente falando, nós ainda não tínhamos escolha. Foi apenas mais tarde que o código foi repensado; até lá, nós tínhamos que fingir.

Mas sobre esse assunto de eu ser uma figura histórica ou um emblema de emancipação- Bem, eu simplesmente não me vejo assim.

Vida Psíquica e Resistência

NB: Um amigo meu historiador, Olivier Wieviorka, queria saber se você tem algum interesse em fazer um filme sobre a resistência.

CA: A França não me interessa.

NB: Imediatamente, para você, eu pensei mais em Sophie Scholl em vez de Jean Moulin.

CA: Falando nisso, a Aurore Clément também queria que eu fizesse isso. Mas eu queria fugir de qualquer coisa que se tratava sobre os campos de concentração, eu fiquei tão aprisionada nesse tema que eu precisava respirar. Eu prefiro cantar. Vamos deixar que outros façam esses filmes. Mas eu vou te contar uma história sobre o meu pai, que se recusou a vestir a estrela amarela. Ele tinha um pouco de couro restando no armário, então ele ficou usando ele pra esconder sua identidade e continuar trabalhando. Um dia, ele estava em um bonde, e um oficial da SS apareceu e sentou perto dele. Meu pai tinha um nariz judeu. Ele disse a si mesmo, ‘eu tenho que sair daqui’, mas ele não se moveu; foi o Nazista que finalmente saiu da cadeira e foi embora. Esse é um tipo de resistência, também. Minha avó também resistiu durante a guerra inteira- ela aguentou, e só depois ela enlouqueceu. Eu adoro esses gestos pequenos: você pode resistir em milhares de maneiras, como fez o meu pai no bonde.

NB: Na realidade, considerando tudo pelo que você passou, você é muito resistente.

CA: Ás vezes. O que eu preciso agora é de leveza. É uma época da minha vida no qual eu preciso me sentir mais leve.

NB: De onde vai surgir isso?

CA: Eu não sei, deixe passar uns dez anos e eu te digo.

Werner Schroeter, Filmes de 8mm com Maria Callas: 

CA: Eu ainda não revi esses filmes, mas na minha memória eles são os mais belos do Werner, desde que eu descobri a obra dele na Colônia( Alemanha) em 1971. Werner não estava lá mas eu conheci ele em 1969 na Bélgica; Jacques Ledoux, o diretor da cinemateca de lá, fez com que ele viesse. Werner era muito bonito, ele falava todas as línguas, ele era tipo um anjo dourado- mais como um criador de si mesmo, não como um herdeiro. Ele significa muito pra mim, e eu pra ele também, em troca.

NB: Você filmou um testamento magnífico dele no Festival de Veneza, 2008.

CA: Sim, mas eu não conseguir gravar ele inteiro; O José Luis Guerin deve ter o final. De qualquer forma, eu lutei muito para ele conseguir ganhar um prêmio.

Palavras ao Vento (1956) de Douglas Sirk & R.W e Num Ano de 13 Luas de Fassbinder (R.W.)

CA: ‘Palavras ao Vento’, esse título é tão bonito. Douglas Sirk conseguiu enfiar tanta subversão dentro do melodrama, basta você refletir sobre Imitação da Vida (1959) e a maneira de como ele convida um espectador branco a sentir as emoções de uma mulher negra. Fassbinder foi muito influenciado pelo Sirk, mas ele introduziu uma crueza particular em seu estilo. Sirk não nos dá a impressão de guardar rancor contra ninguém; em seus filmes, não há traço algum de ressentimento. Independente de qual era o desejo consciente de Sirk, ele é completamente superado pelo filme em si. É isso que gera a sua força, sua beleza.

NB: Entretanto, em ambos os seus filmes e instalações, você evita elaborar uma psicologia ou pathos de personagens.

CA: Mesmo com a minha tendência sempre caminhando em direção ao Bresson, eu acho que é possível atingir o mesmo materialismo essencial por um caminho oposto, pelo melodrama. Há em Bresson e Sirk, dois caminhos distintos que se cruzam; o plano final de Pickpocket (1959) poderia ser o fim de um filme do Douglas Sirk. Sirk já existe aqui no Inferno de Dante, e o Bresson ainda está no limiar, em trânsito. Eu menciono Dante por causa do fogo.

NB: Em Palavras ao Ventohá o fogo das torres e dos campos petrolíferos.

CA: O ouro diabólico que- isso é insinuado repetidamente- destrói a terra e envenena o mar.

La région centrale (1971) de Michael Snow

CA: Eu vi esse filme em Nova Iorque, quando tinha 21 anos, graças a Babette Mangolte, que me introduziu a um universo que eu não conhecia. A experiência sensorial que eu passei na exibição dele foi extraordinariamente poderosa e física. Foi uma revelação para mim, que era possível fazer um filme sem ter contar uma estória. E no entanto os tracking shots de <——–> (Back and Forth, 1969) feitos em uma sala de aula, com movimentos que são exclusivamente espaciais enquanto nada em si acontece, produzem um estado de suspense tão tenso como qualquer filme do Hitchcock. Aprendi com Snow que apenas um movimento de câmera já é capaz de desencadear uma resposta emocional tão forte como a de qualquer ficção narrativa.

NB: Os seus filmes dessa época retrabalham imediatamente essas novas experiências.

CA: Sim, mas eles também são muito diferentes. Não queria que eles pertencessem à experimentação científica. Não adotei o estilo programático do Snow, eu não estou afim de confirmar ou repudiar uma hipótese. Nesse aspecto, eu me afasto dele. Mas os seus filmes me libertaram.

NB: A longo prazo, não acha que regressou a eles com as suas instalações, que estão isoladas da ideia de criar uma narrativa?

CA: Não, porque não me interessa apenas fazer um experimento formal de uma ideia. Estou à procura de algo, mesmo não tendo a certeza do quê; eu nunca me prendo ao conceitual, nunca. Além disso, ele disso ele era um mulherengo extraordinário; ele trouxe-me ao seu sótão e eu estava indefesa com o seu charme e presença. Mas estava contente.

Moisés E Aarão (1975) de Jean-Marie Straub & Danièle Huillet

CA: Eu assisti em Cannes na época de lançamento. A temática dele me entusiasmou muito. Era tão belo, tão cativante e inteligente – uma beleza que não quer ser bela, e é por isso que ela consegue. Aarão permite que a estátua do Bezerro de Ouro seja erguida ; graças a ele, os Mandamentos são quebrados, por isso agora não eles são apenas Mandamentos, mas se tornam as ideias mais poderosas do mundo. 

O materialismo de Straub & Huillet permite que eles se distanciem do aspecto religioso, o que é vital para nós. A diferença entre Moisés e Aarão diz respeito à questão do êxodo – um momento crucial para a humanidade, quer se seja judeu, árabe, ou qualquer outra religião. 
Tudo está lá: a Lei, a violação da lei, o êxodo dos escravos, o ídolo. Ainda estamos lá, e ainda não percebemos isso. 
O êxodo é um dos livros mais importantes do mundo ocidental e semítico.

Sobrevivência e Mise en scène

NB: Os seus filmes colocam frequentemente a figura do corpo em estados de sobrevivência pura, o que um corpo faz quando têm frio, quando têm fome, quando está ameaçado, onde consegue os recursos para se sustentar fisicamente. Os seus filmes medem a força concreta que um corpo pode ter.

CA: Sim, mas também a alegria de poder gastar energia; eu amo dançar, é como se fosse uma droga, uma libertação de todos os laços do prazer – sim, como vocês dizem, definitivamente relacionado com a sexualidade, mas não apenas a sexualidade.

NBNo entanto, não é disso que trata o seu filme sobre Pina Bausch.

CA: Não. No início, tinha ficado deslumbrada, só via a beleza, o esteticismo. Mas quando fiz o filme sobre ela, compreendi que ela faz com que o espectador tenha prazer no sadismo dela através de sua beleza formal. Mas ela é uma grande artista.

NB: Não é o próprio princípio da criação da Mise En Scène intrinsicamente sádico?, no sentido de colocar corpos à sua disposição e ter prazer em mover eles?

CA: Não, não é a mesma coisa porque isso passa através de uma imagem. No palco, vemos o corpo na vida real sem intermediação. E o cinema se consiste , simultaneamente, do momento em que você está assistindo o filme, e também do momento em que o filme está sendo realizado. Não, não é a mesma coisa. E além disso, para ela, os atores caem, atiram-se contra as paredes, por exemplo – mas é através de sua forma, do seu esteticismo, que sentimos prazer disso.

Ela se comunica com uma voz suave e gentil. É uma guru, ninguém se atreve a contestar nada. Para cada espetáculo, ela toma notas, ela bandeia palavras, e os dançarinos entregam-se à improvisação. E com isso se cria uma montagem, uma montagem do que interessa ela. Ela domina completamente, com uma voz doce que é mais brutal que uma briga de peixes. Em 1973, ‘Psicanálise e Política‘ com Antoinette Fouque – resume essa mesma coisa. Ela psicanalisava você de forma selvagem e quase te matava. Muitas ideias erradas reinavam depois de Maio de 68; por exemplo, havia muitos maoístas judeus, não sei como era possível, nunca acreditei em nenhuma ideologia. Depois de Stalin e dos campos, sabe-se com certeza que uma ideologia sempre leva ao pior. Mesmo que pareça bela e boa em teoria.

                                                    Confiança

CA: Sempre pensei que a minha mãe era a mulher mais bela do mundo e que ela tinha um amor louco por mim, como o meu por ela.

Finalmente, eu entendi que ela não podia amar ninguém a não ser ela mesma e, mesmo assim, não totalmente. Ela teve que aprender isso nos campos de concentração. Ter um amor total a si própria para poder continuar lutando e sobrevivendo.  Era uma espécie de força.

Só muito mais tarde eu percebi que o meu pai me amava. Quando ele estava perto de falecer, eu senti que ele queria que eu estivesse ao seu lado. A única coisa que fazia ele se sentir melhor era eu a cantar canções em iídiche; ele imaginava eu como seu eu fosse a sua mãe, que eu tinha 75 anos de idade. Só as minhas canções o relaxavam. Ou assim eu penso – ou assim eu quero pensar. Ele teve embolia cerebral. Operaram o coração dele e ele não morreu. Não, o seu coração manteve ele vivo enquanto o resto do corpo dele estava em agonia e se desmoronando.

Eu Telefonei ao médico para interromper o que o mantinha vivo. Já bastava. Não se pode viver apenas com um coração. O médico aumentou a dose de morfina. E três dias mais tarde, o meu pai morreu. Foi o minha primeiro ação concreta como adulta. A minha mãe não parava de dizer: ‘Você vai ser sempre o meu bebé‘. Tomei essa decisão sozinha, sem dizer nada a ninguém, com muita calma.

NBQuantos anos você tinha?

CA: 45 anos. É uma das coisas boas que eu realizei na minha vida. Fiz algo que foi bem difícil de fazer. Durante o meu primeiro colapso mental, o meu pai veio ao hospital com a minha mãe me visitar; eu fugi do hospital, retornei para Bruxelas, a minha mãe fugiu para me encontrar e lá em casa eu encontrei meu pai e fiquei sozinho com ele por um tempo. Conversamos durante sem perceber que o dia está ficando tarde. O meu pai estava lá por mim, não pra minha mãe. Isso tinha sido demais pra ela depois de tudo que ela tinha passado. Eu perguntei ao meu pai: “Quando parti aos 18 anos, sem nenhum dinheiro, você não teve medo por mim? Não teve medo que eu me tornasse uma prostituta, uma drogada, etc.?“. Ele respondeu: ‘Não, eu confiei em você Chantal‘. O meu pai nasceu em 1919 numa família ortodoxa; ele era um pai de verdade, diferente de tudo que existe agora.

NB: Um patriarca.

CA: Sim e não. Um pai ‘antiquado’, de velha guarda. Era realmente algo em que ele tinha esse tipo de confiança. Ele deixou-me partir sem um tostão, sem sentir nenhuma dúvida em relação a mim. Ao menos, eu acredito nisso.

Últimos Dias (2005) de Gus Van Sant

CA: Quando eu fico doente, eu me sinto como o Kurt Cobain. Michael Pitt, que o interpreta, disse pra mim que Gus van Sant exibiu Jeanne Dielman antes de rodar o filme. Mas Elephant (2003), que é fascinante pela sua beleza, é mais problemático também que esse filme.

As Duas Faces Da Realidade (1965) de Agnés Varda

CA: A ideia é extraordinária: um amor tem o mesmo valor que outro, uma pessoa pode ser substituída por outra. Para mim, esse é filme mais anti-romântico que existe. Falei sobre isso com Agnès, ela não concorda comigo. Mas na época este filme foi muito ousado. Talvez ainda seja.

Ao contrário de Marguerite Duras, a Agnès tem uma inteligência que sempre está sintonizada com o mundo. Ela viveu vários infernos pessoais, certamente quando Jacques a deixou por um homem. Ele era cínico sobre o amor; no final, o que lhe interessava era conseguir se reconciliar com a vida em si, como vemos com o personagem do jovem proprietário da garagem em Os Guarda-Chuvas do Amor (1964).

NB: Não poderia dizer que eles eram um casal de amantes e artistas que inventaram o seu próprio mundo emocional e sexual?

CA: Sim, eu também poderia ter dito isso. Tem que poder se reconciliar com vida, é importante. Se confiar a sua vida aos sonhos da literatura, como no Romantismo, por exemplo, viverá em um estado de constante desilusão. É por isso que os casais de casamentos arranjados me interessam: em vez de começarem já apaixonados e depois se desiludem, eles entram em um processo de conhecer a outra pessoa. Fica assim menos tolo durante o tempo. Bem, ao mesmo tempo, digo isso a mim mesma, mas não tenho a certeza se acredito nisso.

Feliz Juntos (1997) de Wong Kar Wai

CA: Um filme tão sensível, eu me sinto como se estivesse em casa. Um puro prazer cinematográfico, com jovens tão belos. Para Wong Kar-wai, há uma espécie de hesitação, de ondulação em relação ao sexo, que é uma coisa que raramente é encontrada num homem. Mas ele deveria ter se recusado em fazer filmes americanos, é um mau serviço ao seu trabalho – o seu último filme, My Blueberry Nights (2007), foi pra mim muito menos inspirado.

NB: ‘Hollywoodiano’ em vez de ‘Americano’ talvez.

CA: Todos queriam ir até Hollywood. Até eu, e até mesmo Godard. É Meca, mas não no verdadeiro significado do termo – é Meca onde você vai pra se esfolar vivo. Mesmo que os nossos colegas judeus tivessem a oportunidade de ir lá trabalhar durante a guerra: os cineastas, os músicos, os escritores…

Eu adoro Los Angeles, embora seja a cidade do crime. Quando lemos os romances policiais, compreendemos que, sem o cinema, nunca teriam existido essas garotas jovens que dirigem seus carros à Los Angeles para conquistar os seus sonhos, apenas para acabarem sendo prostitutas ou drogadas. O cinema permite o pior de tudo lá: poder, dinheiro. E o estilo de vida americano tem destruído a humanidade pouco a pouco. É também uma ideologia fica se propagando, mas sem um discurso de salvação do mundo. Propaga-se apenas como um veneno consumindo tudo ao seu redor.

Publicado originalmente em lolajournal. Versão original em Inglês traduzida por David Phelps.
















































FESTIVAL ECRÃ 2024: Interview with Matilde Miranda Mellado, director of Salaman Extensor.

  One thing that really touched me about your film was this theme of trying to search for  a way to express an emotion that is very internal...